1.
Complete as frases com os verbos nos tempos pedidos:
a) Se nós _____________ com você, mamãe sorriria. (brincar – pretérito
imperfeito do subjuntivo)
b) Quando eles ______________ a porta, nós cantaremos parabéns. (abrir –
futuro do subjuntivo)
c) Nós desejamos que vocês ______________ conosco para o almoço. (ficar –
presente do subjuntivo
d) Elas não __________________ as balas. (dividir – pretérito perfeito do
indicativo)
e) Os meninos _____________ no quadro. (desenhar – presente)
f) Nós __________________ para outra cidade. (partir –
futuro do presente do indicativo)
g) Eles __________________ se quisessem. (comer – futuro do pretérito)
h) Nós já
_______________ todas as palavras. (escrever – pretérito mais-que-perfeito)
i) A mulher ______________ a casa. (arrumar –
pretérito imperfeito do indicativo)
2. Passe
as frases do pretérito perfeito para o futuro do presente, como no modelo:
Eles venderam todas as frutas. / Eles venderão todas as
frutas.
a) Vocês compraram o jornal?
_____________________________________
b) Elas não dividiram as balas. ____________________________________
c) Os meninos pularam o muro de seu Reinaldo. ______________________
3. Passe
as frases do futuro do presente para o futuro do pretérito:
a) Você correrá para a praia. ________________________
b) Nós partiremos para outra cidade. ____________________
c) Eles procurarão um novo emprego. ___________________
4.. Siga
o modelo, fazendo os três pretéritos do indicativo:
Ele
apontou os erros dela. / Eu apontava os erros dela. / Eles apontaram
os erros dela.
a) Ele preparou o bolo para mamãe.
Ele apontou os erros dela. / Eu apontava os erros dela. /
Eles apontaram os erros dela.
a) Ele preparou o bolo para mamãe.
Eu
_____________________________ / Eles ____________________
b) Ele perdeu a carteira na rua.
Eu
_____________________________ / Eles ____________________
c) Ele mentiu para seu melhor amigo.
Eu
_____________________________ / Eles ____________________
5. Passe
as frases para o pretérito imperfeito:
O pai
chegou pouco depois da oito.
O homem
deixou o livro de lado.
Cecília e
Marcos colocaram o cotovelo na mesa e soltaram lágrimas de tanto rir.
Eu gostei
das histórias que mamãe me contou.
6. Passe
as frases para o pretérito perfeito:
Ana
passava a mão na cabeça do menino.
Fábio
corria pelo corredor.
Mamãe e
papai não falavam nem sim nem não.
Eu
precisava decidir rapidamente.
7. Os
fatos abaixo foram narrados no tempo passado. Reescreva-os no tempo presente:
Um mosquito pousou no chifre de um touro e lá ficou por muito tempo. Depois
voou e perguntou ao touro:
-
O meu
peso não o incomodou?
8.
Complete as frases empregando o verbo no futuro do pretérito:
A - Se
não tivesse chovido, os agricultores __ (Ter) perdido toda a plantação.
B - Com
certeza eu ___ (ajudar) a você, se conhecesse o assunto.
C - Por
favor, você ___ (ler) este texto por mim?
D - Todos
_____ (continuar) jogando, se houvesse mais tempo.
9. Dê o
tempo em que se encontram os verbos destacados, marcando:
(1)
presente (2) pretérito perfeito (3)pretérito
imperfeito (4) futuro do presente
a) O homem sentou-se ( ) do outro lado da mesa.
b) Eu farei ( ) o café e você varrerá ( ) a cozinha.
c) A menina vivia ( ) preocupada.
d) O menino dorme ( ) no sofá da sala.
e) Você pensou ( ) numa solução?
f) Nós estudaremos ( ) para a prova.
g) Ela bebia ( ) um refrigerante.
10. Passe
o verbo para o tempo presente:
Eu entrei
em casa.
Fechou os
olhos com força.
Eu
ficarei aqui sozinho.
11.
Escreva os verbos nos tempos pretérito perfeito e pretérito imperfeito:
Ele sente
fome.
Ouvem a
algazarra dos pardais?
Este
cachorro late muito forte.
Eu
garanto isso.
12. Passe
os verbos para o futuro do presente:
Amanhã
viajo cedo.
Os raios
do Sol aquecem a Terra.
Eles
acenderam as luzes durante o dia.
13. Em
que tempo está o verbo destacado?
A noite
soprou um vento forte.
Ficarei
aqui sozinha com eles.
Chegaremos
amanhã bem cedo.
Cara-de-pau
acreditava na noite.
Eles se
acomodaram num canto.
14.
Complete o texto com os verbos do quadro:
Passou
voava está doer estava
disse hesitar viu
|
Uma vez ____ um gafanhoto sentado numa pedra cor-de-rosa, quando _____ uma
borboleta azul. Dum azul tão lindo que até faz _______ os olhos. A borboleta
que ______ baixo _____ o gafanhoto sentado e triste. E _____-lhe depois de
_____ um momento, um momento pequenino:
-
Por que
você ______ triste?
15. Faça
a correspondência. Veja o exemplo:
(a) Eu e
meu irmão
( ) encontrei um velho amigo.
(b) Ah!
Vocês
( ) já pagaste o pão?
( c )
Carlos
( ) volta hoje para casa.
(d)
Eu
( ) correrá na maratona.
(e) Meu
tio
( ) olhariam as estrelas e se apaixonariam.
(f)
Tu
( ) guiava lentamente pela avenida.
(g) O
atleta
( ) terminas esse trabalho para mim?
(h) Maíra
e
Alex
( ) confirmarão a viagem só amanhã.
(a)
conversávamos sobre cinema.
Flávia Carias - Professores Solidários
CRÔNICAS
Português
Leia o texto abaixo e responda com um X as questões
de 1 a 6.
Pneu furado (Gênero textual
–Crônica)
O carro
estava encostado no meio-fio, com um pneu furado. De pé ao lado do carro,
olhando desconsoladamente para o pneu, uma moça muito bonita. Tão bonita que
atrás parou outro carro e dele desceu uma homem dizendo: ”Pode deixar”.Ele
trocarei o pneu.
- Você tem
macaco?- Perguntou o homem.
- Não –
Respondeu a moça.
- Vamos usar
o meu – disse o homem – Você tem estepe?
- Não -disse
a moça.
- Vamos usar
o meu – Disse o homem.
E pôs-se a
trabalhar, trocando o pneu, sob o olhar da moça. Terminou no momento em que
chegava o ônibus que a moça estava esperando. Ele ficou ali, suando, de boca
aberta, vendo o ônibus se afastar. Dali a pouco chegou o dono do carro.
- Puxa, você
trocou o pneu do carro pra mim. Muito obrigado.
- É. Eu... Eu não posso ver pneu
furado. Tenho que trocar.
- Coisa estranha.
- É uma compulsão. Sei lá.
1 – Por que o
homem trocou o pneu do carro?
A ( X )
Porque ele queria ser simpático com a moça.
B ( ) Porque ele tinha compulsão de trocar pneus.
C ( ) Porque era seu dever ajudar o próximo.
D ( ) Porque ele tinha estepe e macaco.
2 – O que ele
sentiu vendo a moça entrar no ônibus ?
A ( ) Raiva C ( X ) Espanto
B ( ) Gratidão D( )Felicidade
3 – A reação do
homem quando o dono do carro agradeceu por ele ter trocado o pneu foi de:
A (X )
Vergonha
C ( )Satisfação
B ( ) Violência D( ) Timidez
4 – Quem conta a
história é:
A ( ) A moça que esperava o ônibus
B ( ) O dono do carro que estava com o pneu
furado
C ( ) Um narrador que participa da história
D ( X) Um
narrador observador que está fora da história
5 – Leia o
trecho e grife a alternativa que mostra um adjetivo (uma característica ou
qualidade) da personagem:
“..De pé ao
lado do carro, olhando desconsoladamente para o pneu, uma moça muito bonita.”
A ( ) Lado C ( ) Pneu
B ( ) Bonita
D( ) Muito
6 – “O carro,
estava encostado no meio-fio, com um pneu furado.” Faça um X na alternativa em
que as duas palavras são substantivos.
A ( ) carro , pneu C (
) furado, estava
B ( ) pneu , encostado D( ) com, pneu
Leia o texto abaixo
e responda com um X as questões7e 8
A Reunião Dos Ratos
(Gênero textual Fábula - Autor Esopo)
Os ratos
resolveram organizar um conselho para decidir, qual seria a melhor alternativa,
para que eles pudessem saber com antecedência, quando o inimigo deles, o Gato,
estava por perto. Dentre as muitas ideias apresentadas, uma delas, que logo foi
aprovada por
todos, considerava que, um sino deveria ser pendurado no pescoço do Gato.
Assim, ao escutarem o tilintar do mesmo, todos poderiam correr a tempo para
seus buracos. Além de gostarem do plano, todos ficaram extasiados com tão
criativa solução. E um velho Rato então questionou:
“Meus amigos, percebo que o plano é realmente muito
bom. Mas, quem dentre nós prenderá o sino no pescoço do Gato?”
E nenhum
voluntário se fez presente.
Moral da História: Dizer o que dever ser feito é uma coisa, fazê-la, entretanto, é “coisa” bastante diferente.
7- Qual a maior
dificuldade enfrentada pelos ratos após descobrir uma ótima ideia para não
serem devorados pelo gato?
A ( ) Todos queriam ajudar
B ( ) Os mais velhos não gostaram da ideia
C (X ) Não
apareceu nenhum voluntário para colocar o sino
D ( ) O gato já tinha ido embora, portanto a
ideia não foi boa.
8 – Outra forma
de escrever MORAL da fábula “A Reunião Dos Ratos” seria:
A ( ) “ A casa de ferreiro, espeto de pau”.
B ( ) “ Água mole em pedra dura tanto bate até
que fura”.
C ( ) “
Mais vale um pássaro na mão do que dois voando”
D ( X ) “ Não basta ter uma ideia é preciso
colocá-la em prática”
Leia o texto 3 e assinale com um X a alternativa correta
A Pipa e o Vento Gênero textual Poesia _ Autora
Cleonice Rainho)
Aprumo a
máquina
A pipa é feliz
Dou linha à
pipa
Porque tem o vento
E ela
sobe alto
Se tudo correr bem,
Pela força
do vento.
Pipa e vento,
O vento é
feliz
Num lindo momento,
Porque leva
a pipa,
Vão chegar ao céu.
9 – No texto
encontramos dois adjetivos. São eles:
A ( ) Lindo, céu C
(X )
feliz/lindo
B ( ) Força, lindo
D( ) pipa/vento
10 - Marque a opção
que define o que é adjetivo.
A ( X ) É a palavra que expressa uma qualidade ou
característica dos seres (dos nomes )
B ( ) É a palavra que indica a ação praticada.
C ( ) É o momento em que a ação acontece.
D ( ) É a palavra que representa a quantidade de
seres de uma mesma espécie
19 Crônicas interessantes para trabalhar em sala de
aula com turma 9 ano..
Olá caros professores, esse ano é ano
de olimpíada de língua portuguesa nas escolas públicas e cada série ficará com
determinado gênero e quem ensina turmas de 9º ano ficará com o
gênero “Crônica”.
Aproveitem
professores para dar o melhor de vocês, abaixo vocês verão alguns exemplos de
crônicas, vamos trabalhar nossos alunos e prepara-lós para um
futuro melhor!!
Prof. João Batista da Silva
A Rua do Ouvidor
Joaquim Manuel de Macedo
Joaquim Manuel de Macedo
A Rua do
Ouvidor contou
diversas lojas de perfumarias, e, por consequência, devia ser a rua mais
cheirosa, mais perfumada entre todas as da cidade do Rio de Janeiro.
E todavia
não o era!...
Com
efeito não havia nem há rua mais opulenta de aromas, de perfumes, de pastilhas
odoríferas, de banhas e de pomadas de ótimo cheiro; mas tudo isso encerrado em
vidrinhos, em frascos e em pequenas caixas bonitas que mantinham e mantêm a Rua
do Ouvidor tão inodora como as outras de dia.
Atualmente
de noite observa-se o mesmo fato.
Naquele
tempo, porém, isto é, nos tempos do Demarais, e ainda depois, a Rua
do Ouvidor, de fácil e reta comunicação com a praia, era uma das mais
frequentadas pelos condutores dos repugnantes barris, das oito horas da noite
até às dez.
A esses
barris asquerosos o povo deu a denominação geralmente adotada de - tigres
- pelo medo explicável que todos fugiam deles.
Esse ruim costume do passado me traz à memória informação falsa e ridícula que li, e caso infeliz e igualmente ridículo, de que fui testemunha ocular e nasal em 1839, no meu saudoso tempo de estudante.
Esse ruim costume do passado me traz à memória informação falsa e ridícula que li, e caso infeliz e igualmente ridículo, de que fui testemunha ocular e nasal em 1839, no meu saudoso tempo de estudante.
A
informação é a seguinte:
Um
francês (viajante charlatão) passou pela cidade do Rio de Janeiro, e
demorando-se nela alguns dias, ouviu dos patrícios da Rua do Ouvidor queixas
dos incômodos tigres que frequentes passavam ali de noite. Sábio e
consciencioso observador que era, o viajante tomou nota do ato, e poucos anos
depois publicou, no seu livro de viagens, esta famosa notícia:
“Na
cidade do Rio de Janeiro, capital do Império do Brasil, feras terríveis, os
trigraves, vagam, durante a noite, pelas ruas, etc., etc.!!!”
E é assim
que escreve a história!
O caso que
observei foi desastroso, mas de natureza que fez rir a todos.
Pouco
depois das oito horas da noite, um inglês, trajando casaca preta e gravata
branca...
Entre
parêntese.
Em 1839
ainda era de uso ordinário e comum a casaca; o reinado de paletó
começou depois; muitos estudantes iam às aulas de casacas, e não havia senador
nem deputado que se apresentasse desacasacado nas respectivas Câmaras: o
paletó tornou-se eminentemente parlamentar de 1845 em diante.
Fechou-se
o parênteses.
O inglês
de chapéu de patente, casaca preta e gravata branca subia pela Rua do
Ouvidor, quando encontrou um negro que descia, levando à cabeça um tigre
para despejá-lo no mar.
O pobre
africano ainda a tempo recuou um passo, mas o inglês que não sabia recuar
avançou outro; o condutor do tigre encostou-se à parede que lhe ficava à
mão direita, e o inglês supondo-se desconsiderado por um negro que lhe dava
passo à esquerda pronunciou a ameaçadora palavra goodemi, e sem mais
tir-te nem guar-te honrou com um soco britânico a face do africano, que
perdendo o equilíbrio pelo ataque e pela dor, deixou cair o tigre para diante e
naturalmente de boca para baixo.
Ah! Que
não sei de nojo como o conte!
O Tigre
ou o barril abismou em seu bojo o chapéu e a cabeça e inundou com o seu
conteúdo a casaca preta, o colete e as calças do inglês.
O negro
fugiu acelerado, e a vítima de sua própria imprudência, conseguindo livrar-se
do barril, que o encapelara, lançou-se a correr atrás do africano, sacudindo o
chapéu em estado indizível, e bradando furioso:
— Pegue ladron! Pegue ladron!...
Mas qual
- pega ladron! -: todos se arredavam de inocente e malcheiroso negro que
fugia, e ainda mais o inglês, tornado tigre pela inundação que recebera.
Era geral
o coro de risadas na Rua do Ouvidor.
O inglês,
perdendo enfim de vista o africano, completou o caso com um remate pelo menos
tão ridículo como o seu desastre. Voltando rua acima, parou em frente de
numeroso grupo de gente que testemunhara a cena, e ria-se dela.
Ainda
hoje o estou vendo; o inglês parou, e sempre a sacudir o chapéu olhou iroso
para o grupo e disse mas disse com orgulhosa gravidade britânica:
— Amanhã
faz queixa a ministro da Inglaterra, e há de ter indenização de chapéu e de
casaca perdidas.
Ah! Eu
creio que então a melhor das risadas que romperam foi a minha gostosa, longa e
repetida risada de estudante feliz e alegrão.
É inútil dizer que não houve questão diplomática. A Inglaterra ainda não se tinha feito representar no Brasil por Mr. Christie, o único capaz (depois do jantar) de exigir indenização do chapéu e da casaca que o patrício perdera.
É inútil dizer que não houve questão diplomática. A Inglaterra ainda não se tinha feito representar no Brasil por Mr. Christie, o único capaz (depois do jantar) de exigir indenização do chapéu e da casaca que o patrício perdera.
Não foi
este único desastre que os tigres ocasionaram, foram muitos e todos mais ou
menos grotescos, e sei de um outro (além da encapelação do inglês) ocorrido na
Rua do Carmo hoje Sete de Setembro, que de súbito desfez as mais doces
esperanças do casamento inspirado e desejado por mútuo amor.
O
namorado era estudante, meu colega e amigo; estava perdidamente apaixonado por
uma viúva, viuvinha de dezoito anos, e linda como os amores.
Uma
noite, a bela senhora estava à janela, e à luz de fronteiro lampião viu o
namorado que, aproveitando o ponto do mais vivo clarão iluminador, lhe
mostrava, levando-o ao nariz, um raminho de lindas flores, que ia enviar-lhe,
quando nesse momento o cego apaixonado esbarrou com um condutor de tigre, e,
embora não encapelado, foi quase tão infeliz como o inglês.
O pior do
caso foi que a jovem adorada incorreu no erro quase inevitável de desatar a
rir, e logo depois de fugir da janela por causa do mau cheiro de que se encheu
a rua.
O
namorado ressentiu-se do rir impiedoso da sua esperançosa e querida noiva; amoroso,
porém, como estava, dois dias depois tornou a passar diante das queridas
janelas.
No erro;
a formosa viúva, ao ver o estudante, saudou-o doce, ternamente, mas levou o
lenço a boca para dissimular o riso lembrador de ridículo infortúnio.
O
estudante deu então solene cavaco, e não apareceu mais à bela viuvinha.
Um tigre
matou aquele amor.
Memórias
da Rua do Ouvidor. Rio de
Janeiro: Perseverança, 1878.
Falemos das flores (25 de novembro de 1855)
José de Alencar
José de Alencar
Falemos
das flores.
O que é
uma flor?
Será esta
criação vegetal que na primavera se abre do botão de uma planta?
Não: a
flor é o tipo da perfeição, é a mais sublime expressão da beleza, é um sorriso
cristalizado, é um raio de luz perfumado.
Por isso
há muitas espécies de flor.
Há as
flores do vale - mimosas criaturas que vivem o espaço de um dia, que se
alimentam de orvalho, de luz e de sombras.
Há as
flores do céu - as estrelas, - que brilham à noite no seu manto azul,
como os olhos de uma linda pensativa.
Há as
flores do ar - as borboletas, - que têm nas suas asas ligeiras as mais
belas cores do prisma.
Há as
flores da terra - as mulheres, - rosas perfumadas que ocultam entre as
folhas os seus espinhos.
Há as
flores dos lábios - os sorrisos, lindas boninas que o menor sopro
desfolha.
Há as
flores do mar - as pérolas, - filhas do oceano que saem do seio das
ondas para se aninharem no seio de uma mulher morena.
Há as
flores da poesia - os versos, - às vezes tão cheios de perfumes e de sentimentos
como a mais bela flor da primavera.
Há as
flores d'alma - os sentimentos, - flores a que o coração serve de vaso,
e as lágrimas de orvalho.
Há as
flores da religião - as preces, - modestas violetas que perfumam a
sombra e o retiro.
Há as
flores da harmonia - os gorjeios - que brincam nos lábios mimosos de uma
boquinha sedutora.
Há as
flores do espírito - os ziguezagues, - que nascem sobre o papel como
rosas silvestres e sem cultura.
(Não falo
dos nossos ziguezagues, que, quando muito, são flores murchas).
Há enfim
uma espécie de flor que é tão rara como a tulipa negra de Alexandre Dumas, como
o cravo azul de Jean-Jacques, como o crisântemo azul de George Sand.
É a
flor da vida, este sonho dourado, este puro ideal a que todos aspiram e de
que tão poucos gozam.
Porque a
flor da vida apenas vive um dia, como as rosas da manhã que a brisa da tarde
desfolha.
E quando
murcha, deixa dentro d'alma os seus perfumes, que são essas recordações
queridas que nos sorriem ainda nos últimos tempos da existência.
Para uns
a flor da vida nasce nos lábios de uma mulher; para outros no seio de um amigo.
Feliz do
caminhante que à beira do bosque por onde passa colhe esta florzinha azul,
espécie de urze cingida de uma coroa de espinhos.
Muitas
vezes, depois de muitas fadigas, quando já tem as mãos feridas dos espinhos, e
que vai colher a flor, ela se desfolha.
O vento
soprou sobre ela, ou um verme roeu-lhe os estames.
Até aqui
os meus leitores têm visto o mundo pelo prisma de uma flor; mas não se devem
iludir com isso.
Algum
velho político de cabelos brancos lhes dirá que isto são simples devaneios de
uma imaginação exaltada.
A flor
é a poesia, mas o fruto é a realidade, é a única verdade da vida.
Enquanto
pois os poetas vivem à busca de flores, os homens sérios e graves, os
homens práticos só tratam de colher os frutos.
Eles veem
desabrochar as flores, exalar os seus perfumes, e esperam como o hortelão que
chegue o outono e com ele o tempo da colheita.
E na
verdade, a flor encerra sempre o germe de um fruto, de um pomo dourado, que
outrora perdeu o homem, mas que é hoje a sua salvação.
A
explicação disto me levaria muito longe, se eu não me lembrasse que até agora
ainda não escrevi uma linha de revista, e ainda não dei aos meus leitores uma
notícia curiosa.
Mas, a
falar a verdade, não me agrada este papel de noticiador de coisas velhas, que o
meu leitor todos os dias vê reproduzidas nos quatro jornais da corte, em
primeira, segunda, e terceira edição.
Poderia
dizer-lhe que depois da epidemia vai-se revelando uma outra epidemia de
divertimentos, realmente assustadora.
Fala-se
em clube artístico, em baile mascarado no teatro lírico, em passeios de
máscaras pelas ruas, numa companhia francesa de vaudevilles, e em mil
outras coisas que tornarão esta bela cidade do Rio de Janeiro um verdadeiro
paraíso.
Neste
tempo é que os folhetinistas baterão as asas de contentes, e não terão trabalho
de escrever tiras de papel; preferirão ir ao baile, ao passeio, ao teatro,
colher as flores de que hão de formar o seu bouquet de domingo.
Enquanto
porém não chega esta bela quadra, essa primavera dos nossos salões, esse abril
florido da nossa sociedade, não há remédio senão contentarmo-nos com o que
temos, e em vez de rosas, apresentar ao leitor as folhas secas do ano.
A respeito de teatro, não falemos; é uma casa em cujo pórtico (digo pórtico figuradamente) a prudência parece ter gravado a inscrição de Dante: — Guarda e passa.
Se
desprezais o aviso e entrais, daí a pouco tereis razão de arrepender-vos.
Sentai-vos
em uma cadeira qualquer: a vossa direita está um gruísta; a vossa esquerda um
chartonista.
Levanta-se
o pano: representa-se a Norma ou a Fidanzata Corsa; canta uma das
duas prima-donas, uma das duas prediletas do público.
— Bravo!
grita o gruísta entusiasmado.
— Que
exageração! diz o chartonista estirando o beiço.
— Divino!
— Oh! é
demais!
—
Sublime!
—
Insuportável!
E assim
neste crescendo continuam os dois dilettanti, de maneira que o
vosso ouvido direito está sempre em completa oposição com o vosso ouvido esquerdo.
Cai o
pano.
No
intervalo conversai um pouco com os vossos vizinhos.
— É
preciso ser completamente ignorante, diz o gruísta com o aplomb de um maestro,
para não se apreciar a sublimidade do talento desta mulher!
Vós, meu
leitor, que não quereis assinar um termo de ignorante, não tendes remédio senão
confessar-vos gruísta, e em lugar de dois pontos de admiração dais três.
— Com
efeito, é uma artista exímia!!!
Apenas
acabais a palavra, quando o chartonista vos interroga do outro lado.
— É
possível que um homem de gosto e de sentimento admita semelhantes exagerações?
Ficais
embatucado; mas, se não quereis passar por homem de mau gosto, deveis
imediatamente responder:
— Com
efeito, não é natural.
Daí a um
momento o vosso vizinho da direita retruca:
— Veja, todos
os camarotes da 4a ordem estão vazios.
— É
verdade!
Torna o
vizinho esquerdo:
— Com
esta chuva, que casa, hem!
— Boa!
Agora
acrescentai a isto as desafinações do Dufrene, a rouquidão do Gentile, os
cochilos do contra-regra, e fazei ideia do divertimento de uma noite de teatro.
Ao correr
da pena. 2ª ed.
São Paulo: Melhoramentos, s/d.
Quem tem medo de
mortadela?
Mário Prata
Mário Prata
Modismo é
conosco mesmo. O brasileiro adora inventar moda. E todo mundo vai atrás dela. A
última do brasileiro é “primeiro mundo”. Os publicitários nativos inventaram a
expressão e agora tudo que nós queremos tem que ser coisa do “primeiro mundo”.
O carro é do primeiro mundo, a bebida é do primeiro mundo, a mulher é do primeiro mundo. Cineastas querem fazer filme de primeiro mundo, diretores de teatro trazem a moda lá da Europa. E os preços, evidentemente, também são de primeiro mundo.
Será que não nos bastam os exemplos de Portugal, Espanha, Irlanda e Grécia, que se debruçaram na mamata da CEE e agora enfrentam uma séria recessão e desemprego?
Por que essa mania, de repente, de querer virar primeiro mundo? De terceiro para primeiro? Não seria o caso de fazer um estágio, antes, no segundo mundo?
Os do primeiro mundo adoram as coisas aqui do terceiro. Por exemplo, a caipirinha. Alemães, ingleses, americanos, suecos caem trôpegos pelas calçadas de Copacabana. Quer coisa rnais brasileira, mais terceiro mundista, mais caipira e mais barata? Mas já estão avacalhando com ela. Agora já tem caipirinha de vodca e, pasmem, de rum. Caipirinha sempre foi e sempre será de cachaça. Coisa de caipira mesmo. E é esta bebida que os europeus vêm procurar aqui. Mas já meteram a vodca e o rum nela para ficar com cara de primeiro mundo. Vamos deixar a caipirinha caipira, brasileiros!
Toda essa introdução para chegar à mortadela. Ou mortandela, como preferem garçons e padeiros. Quer coisa mais brasileira que a mortadela? Claro que ela veio lá da Itália. Mas tornou-se, talvez pelo baixo preço, o petisco do brasileiro. O nome vem de murta, uma plantinha italiana que lhe valeu o nome. Infelizmente o brasileiro acha que mortadela é coisa de pobre, de faminto. E o que somos nós, cara-pálidas?
A cachaça e a mortadela são produtos do Brasil, do nosso querido terceiro mundo. Mas acontece que há um preconceito dos patrícios contra a cachaça e a mortadela. Contra a mortadela o caso é mais grave. Se você oferecer mortadela numa festa, vão te olhar feio. Você deve estar perto da falência.
Neste Natal e no Reveillon frequentei várias mesas, e em nenhuma havia mortadela. Queijos de primeiro mundo, vinho de primeiro mundo, perfumes de primeiro mundo, até um peru argentino eu comi. Mas mortadela que é bom, nada. Nem uma fatiazinha.
Quando o brasileiro irá assumir que a mortadela é a melhor entrada do mundo? Quando você for para a Europa, não adianta pedir dead her que não vai encontrar. Nem muerta delMas nem tudo está perdido. No dia 1° do ano almocei com o casal Annette e Tenório de Oliveira Lima, e lá estava a mortadela, fresquinha no prato rósea. Um limãozinho em cima, um pedacinho de pão e viva o terceiro mundo, visto lá de cima do apartamento do Morumbi.
No mesmo dia, de noite, fui ao peemedebista Bar Nabuco, debaixo de frondosas sibipirunas da Praça Vilaboim e estava lá, no cardápio, toda sem-vergonha, a mortadela brasileira. Achei que estava começando bem o ano. Vai ser um Ano Bom, como se dizia antigamente. Se os novos-ricos do PMDB estão comendo mortadela, nem tudo está perdido. No Gargalhada Bar mais para PT, há um excelente sanduíche de mortadela.
E, nas boas padarias do ramo você ainda encontra a verdadeira mortadela, aquela que chega no balcão, feita na chapa, sem queimar muito, servida em pãezinhos saídos do forno.
Vamos deixar o primeiro mundo para lá. Vamos, este ano, tomar cachaça e comer mortadela. É muito mais barato ser pobre. Deixemos que o primeiro mundo exploda entre eles, mesmo tomando uísque escocês e comendo queijo fedido.
Por favor senhores brasileiros primeiro-mundistas, vamos deixar de frescura. Mortadela é o que há. É um barato.
Feliz 94 para todos vocês. Muita cachaça e muita mortadela. Apesar de tudo, o primeiro mundo é triste e melancólico. Continuemos felizes e alegres com a nossa cachaça e a nossa gostosa mortadela.
E que os candidatos à presidência deste nosso país do terceiro mundo não se esqueçam que o Jânio sempre se elegeu comendo “mortandela” e não caviar do primeiro mundo.
O carro é do primeiro mundo, a bebida é do primeiro mundo, a mulher é do primeiro mundo. Cineastas querem fazer filme de primeiro mundo, diretores de teatro trazem a moda lá da Europa. E os preços, evidentemente, também são de primeiro mundo.
Será que não nos bastam os exemplos de Portugal, Espanha, Irlanda e Grécia, que se debruçaram na mamata da CEE e agora enfrentam uma séria recessão e desemprego?
Por que essa mania, de repente, de querer virar primeiro mundo? De terceiro para primeiro? Não seria o caso de fazer um estágio, antes, no segundo mundo?
Os do primeiro mundo adoram as coisas aqui do terceiro. Por exemplo, a caipirinha. Alemães, ingleses, americanos, suecos caem trôpegos pelas calçadas de Copacabana. Quer coisa rnais brasileira, mais terceiro mundista, mais caipira e mais barata? Mas já estão avacalhando com ela. Agora já tem caipirinha de vodca e, pasmem, de rum. Caipirinha sempre foi e sempre será de cachaça. Coisa de caipira mesmo. E é esta bebida que os europeus vêm procurar aqui. Mas já meteram a vodca e o rum nela para ficar com cara de primeiro mundo. Vamos deixar a caipirinha caipira, brasileiros!
Toda essa introdução para chegar à mortadela. Ou mortandela, como preferem garçons e padeiros. Quer coisa mais brasileira que a mortadela? Claro que ela veio lá da Itália. Mas tornou-se, talvez pelo baixo preço, o petisco do brasileiro. O nome vem de murta, uma plantinha italiana que lhe valeu o nome. Infelizmente o brasileiro acha que mortadela é coisa de pobre, de faminto. E o que somos nós, cara-pálidas?
A cachaça e a mortadela são produtos do Brasil, do nosso querido terceiro mundo. Mas acontece que há um preconceito dos patrícios contra a cachaça e a mortadela. Contra a mortadela o caso é mais grave. Se você oferecer mortadela numa festa, vão te olhar feio. Você deve estar perto da falência.
Neste Natal e no Reveillon frequentei várias mesas, e em nenhuma havia mortadela. Queijos de primeiro mundo, vinho de primeiro mundo, perfumes de primeiro mundo, até um peru argentino eu comi. Mas mortadela que é bom, nada. Nem uma fatiazinha.
Quando o brasileiro irá assumir que a mortadela é a melhor entrada do mundo? Quando você for para a Europa, não adianta pedir dead her que não vai encontrar. Nem muerta delMas nem tudo está perdido. No dia 1° do ano almocei com o casal Annette e Tenório de Oliveira Lima, e lá estava a mortadela, fresquinha no prato rósea. Um limãozinho em cima, um pedacinho de pão e viva o terceiro mundo, visto lá de cima do apartamento do Morumbi.
No mesmo dia, de noite, fui ao peemedebista Bar Nabuco, debaixo de frondosas sibipirunas da Praça Vilaboim e estava lá, no cardápio, toda sem-vergonha, a mortadela brasileira. Achei que estava começando bem o ano. Vai ser um Ano Bom, como se dizia antigamente. Se os novos-ricos do PMDB estão comendo mortadela, nem tudo está perdido. No Gargalhada Bar mais para PT, há um excelente sanduíche de mortadela.
E, nas boas padarias do ramo você ainda encontra a verdadeira mortadela, aquela que chega no balcão, feita na chapa, sem queimar muito, servida em pãezinhos saídos do forno.
Vamos deixar o primeiro mundo para lá. Vamos, este ano, tomar cachaça e comer mortadela. É muito mais barato ser pobre. Deixemos que o primeiro mundo exploda entre eles, mesmo tomando uísque escocês e comendo queijo fedido.
Por favor senhores brasileiros primeiro-mundistas, vamos deixar de frescura. Mortadela é o que há. É um barato.
Feliz 94 para todos vocês. Muita cachaça e muita mortadela. Apesar de tudo, o primeiro mundo é triste e melancólico. Continuemos felizes e alegres com a nossa cachaça e a nossa gostosa mortadela.
E que os candidatos à presidência deste nosso país do terceiro mundo não se esqueçam que o Jânio sempre se elegeu comendo “mortandela” e não caviar do primeiro mundo.
Publicada
no jornal O Estado de S. Paulo, 5/1/1994.
A arte de ser avó
Rachel de Queiroz
Rachel de Queiroz
Netos são
como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de
repente lhe caem do céu. É, como dizem os ingleses, um ato de Deus. Sem se
passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da
maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto, como o filho adotado: o
neto é realmente o sangue do seu sangue, filho de filho, mais filho que o filho
mesmo...
Quarenta anos, quarenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem suas alegrias, as suas compensações - todos dizem isso, embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.
Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a prestações, você não encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.
E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choros, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino seu que lhe é “devolvido”. E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo e decepção se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.
Sim, tenho certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixados pelos arroubos juvenis.
[...]
E quando você vai embalar o menino e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz: “Vó!”, seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.
[...]
Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menininho - involuntariamente! - bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beiço pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque “ninguém” se zangou, o culpado foi a bola mesmo, não foi, Vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague...
Quarenta anos, quarenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem suas alegrias, as suas compensações - todos dizem isso, embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.
Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a prestações, você não encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.
E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choros, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino seu que lhe é “devolvido”. E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo e decepção se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.
Sim, tenho certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixados pelos arroubos juvenis.
[...]
E quando você vai embalar o menino e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz: “Vó!”, seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.
[...]
Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menininho - involuntariamente! - bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beiço pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque “ninguém” se zangou, o culpado foi a bola mesmo, não foi, Vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague...
Elenco de
cronistas modernos. 21ª ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
Conformados
e
realistas
(Tostão)
Fernando Calazans e poucos outros jornalistas esportivos têm sido críticos e realistas sobre a qualidade e o futuro do futebol brasileiro, da Seleção e dos clubes. Penso da mesma forma. Estamos preocupados. Já a numerosa turma do oba-oba, também chamada de otimista, acha que somos muito pessimistas.
Fernando Calazans e poucos outros jornalistas esportivos têm sido críticos e realistas sobre a qualidade e o futuro do futebol brasileiro, da Seleção e dos clubes. Penso da mesma forma. Estamos preocupados. Já a numerosa turma do oba-oba, também chamada de otimista, acha que somos muito pessimistas.
Os
conformados, os que têm pouco senso crítico e também os modernistas, que são
muito bem preparados cientificamente, dizem que o futebol moderno é esse aí.
Temos de engoli-lo. Tocar a bola e esperar o momento certo para tentar fazer o
gol virou sinônimo de lentidão. Confundem modernidade com mediocridade.
Ninguém é
tão ingênuo para achar que se deve jogar hoje no estilo dos anos 60. O que
queremos é ver mais qualidade. Não podemos nos contentar com um futebol medíocre,
quase só de jogadas aéreas e de muita falta e correria. O encanto do futebol é
outro.
Os
jogadores são produzidos em série, para exportação, como uma fábrica de
parafusos. Os atletas de talento são colocados na mesma linha de produção dos
medíocres. Há mercado para todos. Aumentou a quantidade e diminuiu a qualidade.
Nos
últimos 14 anos, a Argentina ganhou cinco mundiais sub-20 (acontecem de dois em
dois anos), além de duas medalhas de ouro nas Olimpíadas. O time que derrotou o
Brasil tem sete jogadores da equipe campeã mundial sub-20 em 2005.
Muitos
vão dizer, com um ótimo argumento, que nesse período, o Brasil ganhou duas
copas do mundo e mais um vice, enquanto a Argentina não venceu nada. A razão
disso é óbvia. A Argentina não teve um único fenômeno nesses 14 anos, até
chegar Messi. Já o Brasil teve Romário, Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho e Kaká.
Todos os cinco ganharam o título de melhor do mundo.
Os
fenômenos, em todos os esportes, dependem muito menos das condições em que são
treinados. Eles não têm explicação. Mas não se pode depender tanto deles. É
preciso criar boas estruturas e estratégias para formar um número maior de
excelentes atletas. Esses têm diminuído no futebol brasileiro.
Muitos
treinadores brasileiros conhecem tudo de esquema tático, de estatísticas, dos
adversários, porém conhecem pouco as sutilezas e subjetividades. Não são bons
observadores.
Quem não
sabe ver não sabe nada. Eles se preocupam mais com seus esquemas táticos que
com a qualidade do jogo e se os melhores jogadores estão nos lugares certos.
Há
exceções. Enfim, apareceu um técnico brasileiro que colocou Carlos Alberto na
posição certa, se movimentando na frente, por todos os lados, e mais perto do
gol, onde pode e deve driblar. Assim ele jogou no Porto com José Mourinho. Carlos
Alberto não é armador, organizador, como atuava.
Felipão
estava louco para ver Robinho no Chelsea porque precisa de um atacante rápido,
habilidoso, que joga melhor pelos lados e que é capaz de marcar no próprio
campo e aparecer com facilidade no ataque. Robinho é um desses raros jogadores.
Se Felipão fosse treinador da Seleção, certamente faria o mesmo.
O Povo Online, 30/8/2008. Disponível em
<www.opovo.uol.com.br/opovo/colunas/tostao/816045.html>.
A escola então era risonha e franca?
Naquele ano de 1919, em Fortaleza, a nossa rua se chamava do Alagadiço: era
larguíssima, uma longa sucessão de chácaras com jardim à frente, imenso quintal
atrás. (...)
Do outro lado da rua, defronte ao poste do bonde, ficava a escola pública da
Dona Maria José. (...) Nela estudava o meu tio Felipe, que era quase da minha
idade.(...) E eu, que chegara um mês antes do Pará, tinha loucura pra
freqüentar a escola, mas ninguém consentia. Minha mãe e meu pai alimentavam
idéias particulares a respeito de educação formal: desde que eu já sabia ler —
aprendi sozinha pelos cinco anos — e tinha livros em casa, jornais, revistas (O
Tico-Tico!), o resto ficava para mais tarde. Eu então fugia, atravessava o
trilho para espiar a escola. Principalmente nos dias de sabatina, quando a
meninada toda formava uma roda, cantando a tabuada, a professora com a
palmatória na mão. Primeiro era em coro, seguido: “6+6, 12! 6+7, 13!” O mais difícil
era a tabuada de multiplicar, principalmente nas casas de sete pra cima e
entrando no salteado: “7x9, 56; 8x9, 72!” Aí a palmatória comia e os bolos eram
dados pelo aluno que acertava, corrigindo o que errava. E eram aplicados na
proporção do erro. Tabuada de sete a nove era fogo. O pior era um aluno
grandalhão — iria pelos 14 anos — que não acertava nunca. Chegando a vez dele,
a roda cantava: “8x7?” A roda esperava e ele gaguejava, ficava da cor de um
pimentão e começava a chorar. Palmatória nele. Eu, que espionava da janela e já
tinha aprendido a tabuada, de tanto ver sabatina, soprava de lá: “56!” Dona
Maria José, se ouvia, levantava os olhos pra cima e até sorria. Mas o pobre
nunca entendia o sopro. Uma vez caiu de joelhos. Mas não perdoavam: bolo nele!
E no dia seguinte ele vinha pra aula de mão amarrada num pano, sempre sujo.
As pessoas são cruéis. Menino é muito cruel. Agora me lembrei que chamavam o
coitado de Zé Grandão. Nunca deu pra nada, nem pra caixeiro de bodega — não
conseguia anotar direito as compras no borrador. Ele mesmo, mais tarde, nos
contou isso.
(...)
Por isso me ficou a convicção, lá no fundo da alma: só se pode mesmo vencer na
vida aprendendo tabuada de cor e salteado. Principalmente as casas altas de
multiplicar.
QUEIROZ,
Rachel de. As terras ásperas – Crônicas.
S. Paulo: Ed. Siciliano, 1993.
Ser brotinho
Paulo Mendes Campos
Paulo Mendes Campos
Ser
brotinho não é viver em um píncaro azulado: é muito mais! Ser brotinho é sorrir
bastante dos homens e rir interminavelmente das mulheres, rir como se o
ridículo, visível ou invisível, provocasse uma tosse de riso irresistível.
Ser
brotinho é não usar pintura alguma, às vezes, e ficar de cara lambida, os
cabelos desarrumados como se ventasse forte, o corpo todo apagado dentro de um
vestido tão de propósito sem graça, mas lançando fogo pelos olhos. Ser brotinho
é lançar fogo pelos olhos.
É viver a
tarde inteira, em uma atitude esquemática, a contemplar o teto, só para poder
contar depois que ficou a tarde inteira olhando para cima, sem pensar em nada.
É passar um dia todo descalça no apartamento da amiga comendo comida de lata e
cortar o dedo. Ser brotinho é ainda possuir vitrola própria e perambular pelas
ruas do bairro com um ar sonso-vagaroso, abraçada a uma porção de elepês
coloridos. É dizer a palavra feia precisamente no instante em que essa palavra
se faz imprescindível e tão inteligente e superior. É também falar legal
e bárbaro com um timbre tão por cima das vãs agitações humanas, uma
inflexão tão certa de que tudo neste mundo passa depressa e não tem a menor
importância.
Ser
brotinho é poder usar óculos enormes como se fosse uma decoração, um adjetivo
para o rosto e para o espírito. É esvaziar o sentido das coisas que os coroas
levam a sério, mas é também dar sentido de repente ao vácuo absoluto. Aguardar
na paciente geladeira o momento exato de ir à forra da falsa amiga. É ter a
bolsa cheia de pedacinhos de papel, recados que os anacolutos tornam
misteriosos, anotações criptográficas sobre o tributo da natureza feminina, uma
cédula de dois cruzeiros com uma sentença hermética escrita a batom, toda uma
biografia esparsa que pode ser atirada de súbito ao vento que passa. Ser
brotinho é a inclinação do momento.
É
telefonar muito, demais, revirando-se no chão como dançarina no deserto
estendida no chão. É querer ser rapaz de vez em quando só para vaguear sozinha
de madrugada pelas ruas da cidade. Achar muito bonito um homem muito feio;
achar tão simpática uma senhora tão antipática. É fumar quase um maço de
cigarros na sacada do apartamento, pensando coisas brancas, pretas, vermelhas,
amarelas.
Ser
brotinho é comparar o amigo do pai a um pincel de barba, e a gente vai ver está
certo: o amigo do pai parece um pincel de barba. É sentir uma vontade doida de
tomar banho de mar de noite e sem roupa, completamente. É ficar eufórica à
vista de uma cascata. Falar inglês sem saber verbos irregulares. É ter comprado
na feira um vestidinho gozado e bacanérrimo.
É ainda
ser brotinho chegar em casa ensopada de chuva, úmida camélia, e dizer para a
mãe que veio andando devagar para molhar-se mais. É ter saído um dia com uma
rosa vermelha na mão, e todo mundo pensou com piedade que ela era uma louca
varrida. É ir sempre ao cinema, mas com um jeito de quem não espera mais nada
desta vida. É ter uma vez bebido dois gins, quatro uísques, cinco taças de
champanha e uma de cinzano sem sentir nada, mas ter outra vez bebido só um
cálice de vinho do Porto e ter dado um vexame modelo grande. É o dom de falar
sobre futebol e política como se o presente fosse passado, e vice-versa.
Ser
brotinho é atravessar de ponta a ponta o salão da festa com uma indiferença
mortal pelas mulheres presentes e ausentes. Ter estudado ballet e
desistido, apesar de tantos telefonemas de Madame Saint-Quentin. Ter trazido
para casa um gatinho magro que miava de fome e ter aberto uma lata de salmão
para o coitado. Mas o bichinho comeu o salmão e morreu. É ficar pasmada no
escuro da varanda sem contar para ninguém a miserável traição. Amanhecer
chorando, anoitecer dançando. É manter o ritmo na melodia dissonante. Usar o
mais caro perfume de blusa grossa e blue-jeans. Ter horror de gente
morta, ladrão dentro de casa, fantasmas e baratas. Ter compaixão de um só
mendigo entre todos os outros mendigos da Terra. Permanecer apaixonada a
eternidade de um mês por um violinista estrangeiro de quinta ordem.
Eventualmente, ser brotinho é como se não fosse, sentindo-se quase a cair do
galho, de tão amadurecida em todo o seu ser. É fazer marcação cerrada sobre a
presunção incomensurável dos homens. Tomar uma pose, ora de soneto moderno, ora
de minueto, sem que se dissipe a unidade essencial. É policiar parentes,
amigos, mestres e mestras com um ar songamonga de quem nada vê, nada ouve, nada
fala.
Ser
brotinho é adorar. Adorar o impossível. Ser brotinho é detestar. Detestar o
possível. É acordar ao meio-dia com uma cara horrível, comer somente e
lentamente uma fruta meio verde, e ficar de pijama telefonando até a hora do
jantar, e não jantar, e ir devorar um sanduíche americano na esquina, tão
estranha é a vida sobre a Terra.
O cego de
Ipanema. Rio de
Janeiro: Editora do Autor, 1960.
A última crônica
Fernando Sabino
Fernando Sabino
A caminho de casa, entro num
botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou
adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar
inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do
irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária
algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais
digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição
do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança
ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do
essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto
o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último
poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de
mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: “Parabéns pra você, parabéns pra você...”. Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.
Elenco de cronistas modernos. 21ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: “Parabéns pra você, parabéns pra você...”. Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.
Elenco de cronistas modernos. 21ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
Peladas
Armando Nogueira
Armando Nogueira
Esta
pracinha sem aquela pelada virou uma chatice completa: agora, é uma babá que
passa, empurrando, sem afeto, um bebê de carrinho, é um par de velhos que troca
silêncios num banco sem encosto.
E, no entanto, ainda ontem, isso aqui fervia de menino, de sol, de bola, de sonho: “Eu jogo na linha! eu sou o Lula!; no gol, eu não jogo, tô com o joelho ralado de ontem; vou ficar aqui atrás: entrou aqui, já sabe”. Uma gritaria, todo mundo se escalando, todo mundo querendo tirar o selo da bola, bendito fruto de uma suada vaquinha.
Oito de cada lado e, para não confundir, um time fica como está; o outro joga sem camisa.
Já reparei uma coisa: bola de futebol, seja nova, seja velha, é um ser muito compreensivo que dança conforme a música: se está no Maracanã, numa decisão de título, ela rola e quiçá com um ar dramático, mantendo sempre a mesma pose adulta, esteja nos pés de Gérson ou nas mãos de um gandula.
Em compensação, num racha de menino ninguém é mais sapeca: ela corre para cá, corre para lá, quica no meio-fio, para de estalo no canteiro, lambe a canela de um, deixa-se espremer entre mil canelas, depois escapa, rolando, doida, pela calçada. Parece um bichinho.
Aqui, nessa pelada inocente é que se pode sentir a pureza de uma bola. Afinal, trata-se de uma bola profissional, uma número cinco, cheia de carimbos ilustres: “Copa Rio-Oficial”, “FIFA — Especial”. Uma bola assim, toda de branco, coberta de condecorações por todos os gomos (gomos hexagonais!), jamais seria barrada em recepção do Itamaraty.
No entanto, aí está ela, correndo para cima e para baixo, na maior farra do mundo, disputada, maltratada até, pois, de quando em quando, acertam-lhe um bico, ela sai zarolha, vendo estrelas, coitadinha.
Racha é assim mesmo: tem bico, mas tem também sem-pulo de craque como aquele do Tona, que empatou a pelada e que lava a alma de qualquer bola. Uma pintura.
Nova saída.
Entra na praça batendo palmas como quem enxota galinha no quintal. É um velho com cara de guarda-livros que, sem pedir licença, invade o universo infantil de uma pelada e vai expulsando todo mundo. Num instante, o campo está vazio, o mundo está vazio. Não deu tempo nem de desfazer as traves feitas de camisas.
O espantalho-gente pega a bola, viva, ainda, tira do bolso um canivete e dá-lhe a primeira espetada. No segundo golpe, a bola começa a sangrar. Em cada gomo o coração de uma criança.
Os melhores da crônica brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.
E, no entanto, ainda ontem, isso aqui fervia de menino, de sol, de bola, de sonho: “Eu jogo na linha! eu sou o Lula!; no gol, eu não jogo, tô com o joelho ralado de ontem; vou ficar aqui atrás: entrou aqui, já sabe”. Uma gritaria, todo mundo se escalando, todo mundo querendo tirar o selo da bola, bendito fruto de uma suada vaquinha.
Oito de cada lado e, para não confundir, um time fica como está; o outro joga sem camisa.
Já reparei uma coisa: bola de futebol, seja nova, seja velha, é um ser muito compreensivo que dança conforme a música: se está no Maracanã, numa decisão de título, ela rola e quiçá com um ar dramático, mantendo sempre a mesma pose adulta, esteja nos pés de Gérson ou nas mãos de um gandula.
Em compensação, num racha de menino ninguém é mais sapeca: ela corre para cá, corre para lá, quica no meio-fio, para de estalo no canteiro, lambe a canela de um, deixa-se espremer entre mil canelas, depois escapa, rolando, doida, pela calçada. Parece um bichinho.
Aqui, nessa pelada inocente é que se pode sentir a pureza de uma bola. Afinal, trata-se de uma bola profissional, uma número cinco, cheia de carimbos ilustres: “Copa Rio-Oficial”, “FIFA — Especial”. Uma bola assim, toda de branco, coberta de condecorações por todos os gomos (gomos hexagonais!), jamais seria barrada em recepção do Itamaraty.
No entanto, aí está ela, correndo para cima e para baixo, na maior farra do mundo, disputada, maltratada até, pois, de quando em quando, acertam-lhe um bico, ela sai zarolha, vendo estrelas, coitadinha.
Racha é assim mesmo: tem bico, mas tem também sem-pulo de craque como aquele do Tona, que empatou a pelada e que lava a alma de qualquer bola. Uma pintura.
Nova saída.
Entra na praça batendo palmas como quem enxota galinha no quintal. É um velho com cara de guarda-livros que, sem pedir licença, invade o universo infantil de uma pelada e vai expulsando todo mundo. Num instante, o campo está vazio, o mundo está vazio. Não deu tempo nem de desfazer as traves feitas de camisas.
O espantalho-gente pega a bola, viva, ainda, tira do bolso um canivete e dá-lhe a primeira espetada. No segundo golpe, a bola começa a sangrar. Em cada gomo o coração de uma criança.
Os melhores da crônica brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.
O amor acaba
Paulo Mendes Campos
Paulo Mendes Campos
O amor
acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e
silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde
começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra
um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o
escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à
alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema,
como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de
solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia
dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do
colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no
olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos
braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres;
mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da
irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania¹ da pretensão ridícula dos
bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a
alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra
coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no
sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas
vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo
parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em
apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais
encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo
imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e
desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus,
ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor
se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em
Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso;
em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta
que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes
acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos
cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e
acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se
dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo
périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba
depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela
que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de
bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue
consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode
acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor;
na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da
primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno;
em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer
motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o
amor acaba.
1. No sentido literário, epifania é um momento privilegiado de revelação quando ocorre um evento que “ilumina” a vida da personagem.
O amor acaba - Crônicas líricas e existenciais. 2ª- ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
1. No sentido literário, epifania é um momento privilegiado de revelação quando ocorre um evento que “ilumina” a vida da personagem.
O amor acaba - Crônicas líricas e existenciais. 2ª- ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
Um caso de burro
Machado de Assis
Machado de Assis
Quinta-feira
à tarde, pouco mais de três horas, vi uma coisa tão interessante, que
determinei logo de começar por ela esta crônica. Agora, porém, no momento de
pegar na pena, receio achar no leitor menor gosto que eu para um espetáculo,
que lhe parecerá vulgar, e porventura torpe. Releve a importância; os gostos
não são iguais.
Entre a grade do jardim da Praça Quinze de Novembro e o lugar onde era o antigo passadiço, ao pé dos trilhos de bondes, estava um burro deitado. O lugar não era próprio para remanso de burros, donde concluí que não estaria deitado, mas caído. Instantes depois, vimos (eu ia com um amigo), vimos o burro levantar a cabeça e meio corpo. Os ossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos fechavam-se de quando em quando. O infeliz cabeceava, mais tão frouxamente, que parecia estar próximo do fim.
Diante do animal havia algum capim espalhado e uma lata com água. Logo, não foi abandonado inteiramente; alguma piedade houve no dono ou quem quer que seja que o deixou na praça, com essa última refeição à vista. Não foi pequena ação. Se o autor dela é homem que leia crônicas, e acaso ler esta, receba daqui um aperto de mão. O burro não comeu do capim, nem bebeu da água; estava já para outros capins e outras águas, em campos mais largos e eternos.
Meia dúzia de curiosos tinha parado ao pé do animal. Um deles, menino de dez anos, empunhava uma vara, e se não sentia o desejo de dar com ela na anca do burro para espertá-lo, então eu não sei conhecer meninos, porque ele não estava do lado do pescoço, mas justamente do lado da anca. Diga-se a verdade; não o fez — ao menos enquanto ali estive, que foram poucos minutos. Esses poucos minutos, porém, valeram por uma hora ou duas. Se há justiça na Terra valerão por um século, tal foi a descoberta que me pareceu fazer, e aqui deixo recomendada aos estudiosos.
O que me pareceu, é que o burro fazia exame de consciência. Indiferente aos curiosos, como ao capim e à água, tinha no olhar a expressão dos meditativos. Era um trabalho interior e profundo. Este remoque popular: por pensar morreu um burro mostra que o fenômeno foi mal entendido dos que a princípio o viram; o pensamento não é a causa da morte, a morte é que o torna necessário. Quanto à matéria do pensamento, não há dúvidas que é o exame da consciência. Agora, qual foi o exame da consciência daquele burro, é o que presumo ter lido no escasso tempo que ali gastei. Sou outro Champollion, porventura maior; não decifrei palavras escritas, mas ideias íntimas de criatura que não podia exprimi-las verbalmente.
E diria o burro consigo:
“Por mais que vasculhe a consciência, não acho pecado que mereça remorso. Não furtei, não menti, não matei, não caluniei, não ofendi nenhuma pessoa. Em toda a minha vida, se dei três coices, foi o mais, isso mesmo antes haver aprendido maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro burro, que é apanhar e calar. Quando ao zurro, usei dele como linguagem. Ultimamente é que percebi que me não entendiam, e continuei a zurrar por ser costume velho, não com ideia de agravar ninguém. Nunca dei com homem no chão. Quando passei do tílburi ao bonde, houve algumas vezes homem morto ou pisado na rua, mas a prova de que a culpa não era minha, é que nunca segui o cocheiro na fuga; deixava-me estar aguardando autoridade.”
“Passando à ordem mais elevada de ações, não acho em mim a menor lembrança de haver pensado sequer na perturbação da paz pública. Além de ser a minha índole contrária a arruaças, a própria reflexão me diz que, não havendo nenhuma revolução declarado os direitos do burro, tais direitos não existem. Nenhum golpe de estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os obrigou. Monarquia, democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta os interesses da minha espécie. Qualquer que seja o regime, ronca o pau. O pau é a minha instituição um pouco temperada pela teima que é, em resumo, o meu único defeito. Quando não teimava, mordia o freio dando assim um bonito exemplo de submissão e conformidade. Nunca perguntei por sóis nem chuvas; bastava sentir o freguês no tílburi ou o apito do bonde, para sair logo. Até aqui os males que não fiz; vejamos os bens que pratiquei.”
“A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando depressa o tílburi e o namorado à casa da namorada — ou simplesmente empacando em lugar onde o moço que ia ao bonde podia mirar a moça que estava na janela. Não poucos devedores terei conduzido para longe de um credor importuno. Ensinei filosofia a muita gente, esta filosofia que consiste na gravidade do porte e na quietação dos sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscos, queria fazer rir os amigos, fui sempre em auxílio deles, deixando que me dessem tapas e punhadas na cara. Em fim...”
Não percebi o resto, e fui andando, não menos alvoroçado que pesaroso. Contente da descoberta, não podia furtar-me à tristeza de ver que um burro tão bom pensador ia morrer. A consideração, porém, de que todos os burros devem ter os mesmos dotes principais, fez-me ver que os que ficavam não seriam menos exemplares do que esse. Por que se não investigará mais profundamente o moral do burro? Da abelha já se escreveu que é superior ao homem, e da formiga também, coletivamente falando, isto é, que as suas instituições políticas são superiores às nossas, mais racionais. Por que não sucederá o mesmo ao burro, que é maior?
Sexta-feira, passando pela Praça Quinze de Novembro, achei o animal já morto.
Dois meninos, parados, contemplavam o cadáver, espetáculo repugnante; mas a infância, como a ciência, é curiosa sem asco. De tarde já não havia cadáver nem nada. Assim passam os trabalhos deste mundo. Sem exagerar o mérito do finado, força é dizer que, se ele não inventou a pólvora, também não inventou a dinamite. Já é alguma coisa neste final de século. Requiescat in pace.
Disponível em <www.eeagorajose.kit.net/estilos/croassisburro.htm>.
Entre a grade do jardim da Praça Quinze de Novembro e o lugar onde era o antigo passadiço, ao pé dos trilhos de bondes, estava um burro deitado. O lugar não era próprio para remanso de burros, donde concluí que não estaria deitado, mas caído. Instantes depois, vimos (eu ia com um amigo), vimos o burro levantar a cabeça e meio corpo. Os ossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos fechavam-se de quando em quando. O infeliz cabeceava, mais tão frouxamente, que parecia estar próximo do fim.
Diante do animal havia algum capim espalhado e uma lata com água. Logo, não foi abandonado inteiramente; alguma piedade houve no dono ou quem quer que seja que o deixou na praça, com essa última refeição à vista. Não foi pequena ação. Se o autor dela é homem que leia crônicas, e acaso ler esta, receba daqui um aperto de mão. O burro não comeu do capim, nem bebeu da água; estava já para outros capins e outras águas, em campos mais largos e eternos.
Meia dúzia de curiosos tinha parado ao pé do animal. Um deles, menino de dez anos, empunhava uma vara, e se não sentia o desejo de dar com ela na anca do burro para espertá-lo, então eu não sei conhecer meninos, porque ele não estava do lado do pescoço, mas justamente do lado da anca. Diga-se a verdade; não o fez — ao menos enquanto ali estive, que foram poucos minutos. Esses poucos minutos, porém, valeram por uma hora ou duas. Se há justiça na Terra valerão por um século, tal foi a descoberta que me pareceu fazer, e aqui deixo recomendada aos estudiosos.
O que me pareceu, é que o burro fazia exame de consciência. Indiferente aos curiosos, como ao capim e à água, tinha no olhar a expressão dos meditativos. Era um trabalho interior e profundo. Este remoque popular: por pensar morreu um burro mostra que o fenômeno foi mal entendido dos que a princípio o viram; o pensamento não é a causa da morte, a morte é que o torna necessário. Quanto à matéria do pensamento, não há dúvidas que é o exame da consciência. Agora, qual foi o exame da consciência daquele burro, é o que presumo ter lido no escasso tempo que ali gastei. Sou outro Champollion, porventura maior; não decifrei palavras escritas, mas ideias íntimas de criatura que não podia exprimi-las verbalmente.
E diria o burro consigo:
“Por mais que vasculhe a consciência, não acho pecado que mereça remorso. Não furtei, não menti, não matei, não caluniei, não ofendi nenhuma pessoa. Em toda a minha vida, se dei três coices, foi o mais, isso mesmo antes haver aprendido maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro burro, que é apanhar e calar. Quando ao zurro, usei dele como linguagem. Ultimamente é que percebi que me não entendiam, e continuei a zurrar por ser costume velho, não com ideia de agravar ninguém. Nunca dei com homem no chão. Quando passei do tílburi ao bonde, houve algumas vezes homem morto ou pisado na rua, mas a prova de que a culpa não era minha, é que nunca segui o cocheiro na fuga; deixava-me estar aguardando autoridade.”
“Passando à ordem mais elevada de ações, não acho em mim a menor lembrança de haver pensado sequer na perturbação da paz pública. Além de ser a minha índole contrária a arruaças, a própria reflexão me diz que, não havendo nenhuma revolução declarado os direitos do burro, tais direitos não existem. Nenhum golpe de estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os obrigou. Monarquia, democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta os interesses da minha espécie. Qualquer que seja o regime, ronca o pau. O pau é a minha instituição um pouco temperada pela teima que é, em resumo, o meu único defeito. Quando não teimava, mordia o freio dando assim um bonito exemplo de submissão e conformidade. Nunca perguntei por sóis nem chuvas; bastava sentir o freguês no tílburi ou o apito do bonde, para sair logo. Até aqui os males que não fiz; vejamos os bens que pratiquei.”
“A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando depressa o tílburi e o namorado à casa da namorada — ou simplesmente empacando em lugar onde o moço que ia ao bonde podia mirar a moça que estava na janela. Não poucos devedores terei conduzido para longe de um credor importuno. Ensinei filosofia a muita gente, esta filosofia que consiste na gravidade do porte e na quietação dos sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscos, queria fazer rir os amigos, fui sempre em auxílio deles, deixando que me dessem tapas e punhadas na cara. Em fim...”
Não percebi o resto, e fui andando, não menos alvoroçado que pesaroso. Contente da descoberta, não podia furtar-me à tristeza de ver que um burro tão bom pensador ia morrer. A consideração, porém, de que todos os burros devem ter os mesmos dotes principais, fez-me ver que os que ficavam não seriam menos exemplares do que esse. Por que se não investigará mais profundamente o moral do burro? Da abelha já se escreveu que é superior ao homem, e da formiga também, coletivamente falando, isto é, que as suas instituições políticas são superiores às nossas, mais racionais. Por que não sucederá o mesmo ao burro, que é maior?
Sexta-feira, passando pela Praça Quinze de Novembro, achei o animal já morto.
Dois meninos, parados, contemplavam o cadáver, espetáculo repugnante; mas a infância, como a ciência, é curiosa sem asco. De tarde já não havia cadáver nem nada. Assim passam os trabalhos deste mundo. Sem exagerar o mérito do finado, força é dizer que, se ele não inventou a pólvora, também não inventou a dinamite. Já é alguma coisa neste final de século. Requiescat in pace.
Disponível em <www.eeagorajose.kit.net/estilos/croassisburro.htm>.
Cobrança
Moacyr Scliar
Moacyr Scliar
Ela abriu
a janela e ali estava ele, diante da casa, caminhando de um lado para outro.
Carregava um cartaz, cujos dizeres atraíam a atenção dos passantes: “Aqui mora
uma devedora inadimplente.”
— Você não pode fazer isso comigo — protestou ela.
— Claro que posso — replicou ele. — Você comprou, não pagou. Você é uma devedora inadimplente. E eu sou cobrador. Por diversas vezes tentei lhe cobrar, você não pagou.
— Não paguei porque não tenho dinheiro. Esta crise...
— Já sei — ironizou ele. — Você vai me dizer que por causa daquele ataque lá em Nova York seus negócios ficaram prejudicados. Problema seu, ouviu? Problema seu. Meu problema é lhe cobrar. E é o que estou fazendo.
— Mas você podia fazer isso de uma forma mais discreta...
— Negativo. Já usei todas as formas discretas que podia. Falei com você, expliquei, avisei. Nada. Você fazia de conta que nada tinha a ver com o assunto. Minha paciência foi se esgotando, até que não me restou outro recurso: vou ficar aqui, carregando este cartaz, até você saldar sua dívida.
Neste momento começou a chuviscar.
— Você vai se molhar — advertiu ela. — Vai acabar ficando doente.
Ele riu, amargo:
— E daí? Se você está preocupada com minha saúde, pague o que deve.
— Posso lhe dar um guarda-chuva...
— Não quero. Tenho de carregar o cartaz, não um guarda-chuva.
Ela agora estava irritada:
— Acabe com isso, Aristides, e venha para dentro. Afinal, você é meu marido, você mora aqui.
— Sou seu marido — retrucou ele — e você é minha mulher, mas eu sou cobrador profissional e você é devedora. Eu a avisei: não compre essa geladeira, eu não ganho o suficiente para pagar as prestações. Mas não, você não me ouviu. E agora o pessoal lá da empresa de cobrança quer o dinheiro. O que quer você que eu faça? Que perca meu emprego? De jeito nenhum. Vou ficar aqui até você cumprir sua obrigação.
Chovia mais forte, agora. Borrada, a inscrição tornara-se ilegível. A ele, isso pouco importava: continuava andando de um lado para outro, diante da casa, carregando o seu cartaz.
O imaginário cotidiano. São Paulo: Global, 2001.
— Você não pode fazer isso comigo — protestou ela.
— Claro que posso — replicou ele. — Você comprou, não pagou. Você é uma devedora inadimplente. E eu sou cobrador. Por diversas vezes tentei lhe cobrar, você não pagou.
— Não paguei porque não tenho dinheiro. Esta crise...
— Já sei — ironizou ele. — Você vai me dizer que por causa daquele ataque lá em Nova York seus negócios ficaram prejudicados. Problema seu, ouviu? Problema seu. Meu problema é lhe cobrar. E é o que estou fazendo.
— Mas você podia fazer isso de uma forma mais discreta...
— Negativo. Já usei todas as formas discretas que podia. Falei com você, expliquei, avisei. Nada. Você fazia de conta que nada tinha a ver com o assunto. Minha paciência foi se esgotando, até que não me restou outro recurso: vou ficar aqui, carregando este cartaz, até você saldar sua dívida.
Neste momento começou a chuviscar.
— Você vai se molhar — advertiu ela. — Vai acabar ficando doente.
Ele riu, amargo:
— E daí? Se você está preocupada com minha saúde, pague o que deve.
— Posso lhe dar um guarda-chuva...
— Não quero. Tenho de carregar o cartaz, não um guarda-chuva.
Ela agora estava irritada:
— Acabe com isso, Aristides, e venha para dentro. Afinal, você é meu marido, você mora aqui.
— Sou seu marido — retrucou ele — e você é minha mulher, mas eu sou cobrador profissional e você é devedora. Eu a avisei: não compre essa geladeira, eu não ganho o suficiente para pagar as prestações. Mas não, você não me ouviu. E agora o pessoal lá da empresa de cobrança quer o dinheiro. O que quer você que eu faça? Que perca meu emprego? De jeito nenhum. Vou ficar aqui até você cumprir sua obrigação.
Chovia mais forte, agora. Borrada, a inscrição tornara-se ilegível. A ele, isso pouco importava: continuava andando de um lado para outro, diante da casa, carregando o seu cartaz.
O imaginário cotidiano. São Paulo: Global, 2001.
O cajueiro
Rubem Braga
Rubem Braga
O
cajueiro já devia ser velho quando nasci. Ele vive nas mais antigas recordações
de minha infância: belo, imenso, no alto do morro atrás da casa. Agora vem uma
carta dizendo que ele caiu.
Eu me lembro do outro cajueiro que era menor e morreu há muito tempo. Eu me lembro dos pés de pinha, do cajá-manga, da grande touceira de espadas-de-são-jorge (que nós chamávamos simplesmente “tala”) e da alta saboneteira que era nossa alegria e a cobiça de toda a meninada do bairro porque fornecia centenas de bolas pretas para o jogo de gude. Lembro-me da tamareira, e de tantos arbustos e folhagens coloridas, lembro-me da parreira que cobria o caramanchão, e dos canteiros de flores humildes, “beijos”, violetas. Tudo sumira; mas o grande pé de fruta-pão ao lado da casa e o imenso cajueiro lá no alto eram como árvores sagradas protegendo a família. Cada menino que ia crescendo ia aprendendo o jeito de seu tronco, a cica de seu fruto, o lugar melhor para apoiar o pé e subir pelo cajueiro acima, ver de lá o telhado das casas do outro lado e os morros além, sentir o leve balanceio na brisa da tarde.
No último verão ainda o vi; estava como sempre carregado de frutos amarelos, trêmulo de sanhaços. Chovera: mas assim mesmo fiz questão de que Carybé subisse o morro para vê-lo de perto, como quem apresenta a um amigo de outras terras um parente muito querido.
A carta de minha irmã mais moça diz que ele caiu numa tarde de ventania, num fragor tremendo pela ribanceira; e caiu meio de lado, como se não quisesse quebrar o telhado de nossa velha casa.
Diz que passou o dia abatida, pensando em nossa mãe, em nosso pai, em nossos irmãos que já morreram. Diz que seus filhos pequenos se assustaram; mas foram brincar nos galhos tombados.
Foi agora, em fins de setembro. Estava carregado de flores.
Setembro, 1954.
Eu me lembro do outro cajueiro que era menor e morreu há muito tempo. Eu me lembro dos pés de pinha, do cajá-manga, da grande touceira de espadas-de-são-jorge (que nós chamávamos simplesmente “tala”) e da alta saboneteira que era nossa alegria e a cobiça de toda a meninada do bairro porque fornecia centenas de bolas pretas para o jogo de gude. Lembro-me da tamareira, e de tantos arbustos e folhagens coloridas, lembro-me da parreira que cobria o caramanchão, e dos canteiros de flores humildes, “beijos”, violetas. Tudo sumira; mas o grande pé de fruta-pão ao lado da casa e o imenso cajueiro lá no alto eram como árvores sagradas protegendo a família. Cada menino que ia crescendo ia aprendendo o jeito de seu tronco, a cica de seu fruto, o lugar melhor para apoiar o pé e subir pelo cajueiro acima, ver de lá o telhado das casas do outro lado e os morros além, sentir o leve balanceio na brisa da tarde.
No último verão ainda o vi; estava como sempre carregado de frutos amarelos, trêmulo de sanhaços. Chovera: mas assim mesmo fiz questão de que Carybé subisse o morro para vê-lo de perto, como quem apresenta a um amigo de outras terras um parente muito querido.
A carta de minha irmã mais moça diz que ele caiu numa tarde de ventania, num fragor tremendo pela ribanceira; e caiu meio de lado, como se não quisesse quebrar o telhado de nossa velha casa.
Diz que passou o dia abatida, pensando em nossa mãe, em nosso pai, em nossos irmãos que já morreram. Diz que seus filhos pequenos se assustaram; mas foram brincar nos galhos tombados.
Foi agora, em fins de setembro. Estava carregado de flores.
Setembro, 1954.
Cem
crônicas escolhidas. Rio de
Janeiro: José Olímpio, 1956.
A bola
Luis Fernando Verissimo
Luis Fernando Verissimo
O pai deu
uma bola de presente ao filho. Lembrando o prazer que sentira ao ganhar a sua
primeira bola do pai. Uma número 5 sem tento oficial de couro. Agora não era
mais de couro, era de plástico. Mas era uma bola.
O garoto agradeceu, desembrulhou a bola e disse “Legal!”. Ou o que os garotos dizem hoje em dia quando gostam do presente ou não querem magoar o velho. Depois começou a girar a bola, à procura de alguma coisa.
— Como e que liga? — perguntou.
— Como, como é que liga? Não se liga.
O garoto procurou dentro do papel de embrulho.
— Não tem manual de instrução?
O pai começou a desanimar e a pensar que os tempos são outros. Que os tempos são decididamente outros.
— Não precisa manual de instrução.
— O que é que ela faz?
— Ela não faz nada. Você é que faz coisas com ela.
— O quê?
— Controla, chuta...
— Ah, então é uma bola.
— Claro que é uma bola.
— Uma bola, bola. Uma bola mesmo.
— Você pensou que fosse o quê?
— Nada, não.
O garoto agradeceu, disse “Legal” de novo, e dali a pouco o pai o encontrou na frente da tevê, com a bola nova do lado, manejando os controles de um videogame. Algo chamado Monster Baú, em que times de monstrinhos disputavam a posse de uma bola em forma de bip eletrônico na tela ao mesmo tempo que tentavam se destruir mutuamente.
O garoto era bom no jogo. Tinha coordenação e raciocínio rápido. Estava ganhando da máquina.
O pai pegou a bola nova e ensaiou algumas embaixadas. Conseguiu equilibrar a bola no peito do pé, como antigamente, e chamou o garoto.
— Filho, olha.
O garoto disse “Legal”, mas não desviou os olhos da tela. O pai segurou a bola com as mãos e a cheirou, tentando recapturar mentalmente o cheiro de couro. A bola cheirava a nada. Talvez um manual de instrução fosse uma boa ideia, pensou. Mas em inglês, para a garotada se interessar.
O garoto agradeceu, desembrulhou a bola e disse “Legal!”. Ou o que os garotos dizem hoje em dia quando gostam do presente ou não querem magoar o velho. Depois começou a girar a bola, à procura de alguma coisa.
— Como e que liga? — perguntou.
— Como, como é que liga? Não se liga.
O garoto procurou dentro do papel de embrulho.
— Não tem manual de instrução?
O pai começou a desanimar e a pensar que os tempos são outros. Que os tempos são decididamente outros.
— Não precisa manual de instrução.
— O que é que ela faz?
— Ela não faz nada. Você é que faz coisas com ela.
— O quê?
— Controla, chuta...
— Ah, então é uma bola.
— Claro que é uma bola.
— Uma bola, bola. Uma bola mesmo.
— Você pensou que fosse o quê?
— Nada, não.
O garoto agradeceu, disse “Legal” de novo, e dali a pouco o pai o encontrou na frente da tevê, com a bola nova do lado, manejando os controles de um videogame. Algo chamado Monster Baú, em que times de monstrinhos disputavam a posse de uma bola em forma de bip eletrônico na tela ao mesmo tempo que tentavam se destruir mutuamente.
O garoto era bom no jogo. Tinha coordenação e raciocínio rápido. Estava ganhando da máquina.
O pai pegou a bola nova e ensaiou algumas embaixadas. Conseguiu equilibrar a bola no peito do pé, como antigamente, e chamou o garoto.
— Filho, olha.
O garoto disse “Legal”, mas não desviou os olhos da tela. O pai segurou a bola com as mãos e a cheirou, tentando recapturar mentalmente o cheiro de couro. A bola cheirava a nada. Talvez um manual de instrução fosse uma boa ideia, pensou. Mas em inglês, para a garotada se interessar.
Comédias
para ler na escola. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001.
São Paulo: as pessoas de tantos lugares
Milton Hatoum
Milton Hatoum
À
primeira vista, São Paulo assusta. Aos poucos, o susto cede ao fascínio, à
surpresa da descoberta de muitos lugares escondidos ou ocultados numa metrópole
da qual a natureza parece ter sido banida. Isto só em parte é verdade. Há
vários parques e jardins — Aclimação, Villa-Lobos, Burle Marx, Água Branca e
tantos outros —, sem contar o Ibirapuera, que simboliza uma promessa de
urbanismo mais civilizado, ou de um processo urbano mais humanizado,
interrompido pela ganância das construtoras e da especulação imobiliária em
conluio com o poder público municipal.
Esse urbanismo desastroso e desumano é uma das características das cidades brasileiras, em que os bons arquitetos não participam da intervenção na paisagem urbana. Apesar das adversidades, um morador de São Paulo aprende a gostar da metrópole. Já quase não se vê o céu de Sampa, mas há bairros que são pequenas cidades, há ruas com um casario de uma outra época, com um ritmo de vida próprio, como se outro tempo resistisse ao cerco dos arranha-céus horrorosos e ao mundo das finanças e do consumo desenfreado.
Gosto de passear pelo Cambuci, Belenzinho, Penha; Brás, Mooca, Tatuapé e Santana ainda revelam muitos encantos, assim como a Estação da Luz e o Mercado Municipal. No mundo grandioso da metrópole, pode-se descobrir uma série de recantos: pequenas praças, um recorte de paisagem, um beco, um conjunto de casas neoclássicas, uma antiga vila operária, um boteco ou restaurante. Recantos que encerram um outro modo de vida, como se a metrópole fosse um palimpsesto a ser descoberto em cada andança. O oposto disso são edifícios dotados de clube e shopping centers, que separam seus moradores do resto da cidade, gerando uma nova forma de segregação do espaço, ainda mais radical que os condomínios.
Há pouco tempo, uma amiga carioca me disse que gostava cada vez mais de São Paulo. Quis saber por que. Porque fiz boas amizades na metrópole vizinha, ela disse.
Senti isso quando me mudei para cá em 1970. Morei num quarto de pensão na Liberdade. Um dos colegas dessa pensão era outro migrante, um rapaz de Londrina que passava o dia estudando música e que se tornou, além de um grande músico, um grande amigo: Arrigo Barnabé.
Entendi que São Paulo era uma meca para onde confluíam pessoas de todos os quadrantes, as latitudes e as origens; talvez seja este o maior encanto desta metrópole que une o culto ao trabalho com promessas de amizade. A diversidade étnica de São Paulo reitera a mestiçagem brasileira, uma das nossas maiores riquezas.
Não há um único paulistano que não reclame do trânsito, da poluição, da violência e das filas intermináveis, mas as relações de trabalho e afeto, que são formas poderosas de inserção social, servem de contrapeso ao caos e aos males da metrópole.
Milton Hatoum, 55, escritor, autor de Órfãos do Eldorado e Dois irmãos (ambos pela Companhia das Letras), entre outros títulos. Texto publicado na Revista da Folha, 25/05/2008.
Esse urbanismo desastroso e desumano é uma das características das cidades brasileiras, em que os bons arquitetos não participam da intervenção na paisagem urbana. Apesar das adversidades, um morador de São Paulo aprende a gostar da metrópole. Já quase não se vê o céu de Sampa, mas há bairros que são pequenas cidades, há ruas com um casario de uma outra época, com um ritmo de vida próprio, como se outro tempo resistisse ao cerco dos arranha-céus horrorosos e ao mundo das finanças e do consumo desenfreado.
Gosto de passear pelo Cambuci, Belenzinho, Penha; Brás, Mooca, Tatuapé e Santana ainda revelam muitos encantos, assim como a Estação da Luz e o Mercado Municipal. No mundo grandioso da metrópole, pode-se descobrir uma série de recantos: pequenas praças, um recorte de paisagem, um beco, um conjunto de casas neoclássicas, uma antiga vila operária, um boteco ou restaurante. Recantos que encerram um outro modo de vida, como se a metrópole fosse um palimpsesto a ser descoberto em cada andança. O oposto disso são edifícios dotados de clube e shopping centers, que separam seus moradores do resto da cidade, gerando uma nova forma de segregação do espaço, ainda mais radical que os condomínios.
Há pouco tempo, uma amiga carioca me disse que gostava cada vez mais de São Paulo. Quis saber por que. Porque fiz boas amizades na metrópole vizinha, ela disse.
Senti isso quando me mudei para cá em 1970. Morei num quarto de pensão na Liberdade. Um dos colegas dessa pensão era outro migrante, um rapaz de Londrina que passava o dia estudando música e que se tornou, além de um grande músico, um grande amigo: Arrigo Barnabé.
Entendi que São Paulo era uma meca para onde confluíam pessoas de todos os quadrantes, as latitudes e as origens; talvez seja este o maior encanto desta metrópole que une o culto ao trabalho com promessas de amizade. A diversidade étnica de São Paulo reitera a mestiçagem brasileira, uma das nossas maiores riquezas.
Não há um único paulistano que não reclame do trânsito, da poluição, da violência e das filas intermináveis, mas as relações de trabalho e afeto, que são formas poderosas de inserção social, servem de contrapeso ao caos e aos males da metrópole.
Milton Hatoum, 55, escritor, autor de Órfãos do Eldorado e Dois irmãos (ambos pela Companhia das Letras), entre outros títulos. Texto publicado na Revista da Folha, 25/05/2008.
Sobre a crônica
Ivan Ângelo
Ivan Ângelo
Uma
leitora se refere aos textos aqui publicados como “reportagens”. Um leitor os
chama de “artigos”. Um estudante fala deles como “contos”. Há os que dizem:
“seus comentários”. Outros os chamam de “críticas”. Para alguns, é “sua
coluna”.
Estão errados? Tecnicamente, sim — são crônicas —, mas... Fernando Sabino, vacilando diante do campo aberto, escreveu que “crônica é tudo o que o autor chama de crônica”.
A dificuldade é que a crônica não é um formato, como o soneto, e muitos duvidam que seja um gênero literário, como o conto, a poesia lírica ou as meditações à maneira de Pascal¹. Leitores, indiferentes ao nome da rosa, dão à crônica prestígio, permanência e força. Mas vem cá: é literatura ou é jornalismo? Se o objetivo do autor é fazer literatura e ele sabe fazer...
Há crônicas que são dissertações, como em Machado de Assis; outras são poemas em prosa, como em Paulo Mendes Campos; outras são pequenos contos, como em Nelson Rodrigues; ou casos, como os de Fernando Sabino; outras são evocações, como em Drummond e Rubem Braga; ou memórias e reflexões, como em tantos. A crônica tem a mobilidade de aparências e de discursos que a poesia tem — e facilidades que a melhor poesia não se permite.
Está em toda a imprensa brasileira, de 150 anos para cá. O professor Antonio Candido observa: “Até se poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e pela originalidade com que aqui se desenvolveu”.
Alexandre Eulálio, um sábio, explicou essa origem estrangeira: “É nosso familiar essay², possui tradição de primeira ordem, cultivada desde o amanhecer do periodismo nacional pelos maiores poetas e prosistas da época”. Veio, pois, de um tipo de texto comum na imprensa inglesa do século XIX, afável, pessoal, sem-cerimônia e, no entanto, pertinente.
Por que deu certo no Brasil? Mistérios do leitor. Talvez por ser a obra curta e o clima, quente.
A crônica é frágil e íntima, uma relação pessoal. Como se fosse escrita para um leitor, como se só com ele o narrador pudesse se expor tanto. Conversam sobre o momento, cúmplices: nós vimos isto, não é, leitor?, vivemos isto, não é?, sentimos isto, não é? O narrador da crônica procura sensibilidades irmãs.
Se é tão antiga e íntima, por que muitos leitores não aprenderam a chamá-la pelo nome? É que ela tem muitas máscaras. Recorro a Eça de Queirós, mestre do estilo antigo. Ela “não tem a voz grossa da política, nem a voz indolente do poeta, nem a voz doutoral do crítico; tem uma pequena voz serena, leve e clara, com que conta aos seus amigos tudo o que andou ouvindo, perguntando, esmiuçando”.
A crônica mudou, tudo muda. Como a própria sociedade que ela observa com olhos atentos. Não é preciso comparar grandezas, botar Rubem Braga diante de Machado de Assis. É mais exato apreciá-la desdobrando-se no tempo, como fez Antonio Candido em “A vida ao rés do chão”: “Creio que a fórmula moderna, na qual entram um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis³ de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma”. Ainda ele: “Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas”.
Elementos que não funcionam na crônica: grandiloquência, sectarismo, enrolação, arrogância, prolixidade. Elementos que funcionam: humor, intimidade, lirismo, surpresa, estilo, elegância, solidariedade.
Cronista mesmo não “se acha”. As crônicas de Rubem Braga foram vistas pelo sagaz professor Davi Arrigucci como “forma complexa e única de uma relação do Eu com o mundo”. Muito bem. Mas Rubem Braga não se achava o tal. Respondeu assim a um jornalista que lhe havia perguntado o que é crônica:
— Se não é aguda, é crônica.
1. Blaise Pascal (1623-1662), matemático, filósofo e teólogo francês, autor de Pensamentos.
2. “Ensaio familiar”. Ensaio é um gênero inaugurado por Michel de Montaigne (1533-1592); vem da palavra francesa essayer (“tentar”). Um ensaio é um texto onde se encadeiam argumentos, por meio dos quais o autor defende uma ideia.
3. Em latim, “a quantidade necessária”.
Veja São Paulo, 25/4/2007.
Estão errados? Tecnicamente, sim — são crônicas —, mas... Fernando Sabino, vacilando diante do campo aberto, escreveu que “crônica é tudo o que o autor chama de crônica”.
A dificuldade é que a crônica não é um formato, como o soneto, e muitos duvidam que seja um gênero literário, como o conto, a poesia lírica ou as meditações à maneira de Pascal¹. Leitores, indiferentes ao nome da rosa, dão à crônica prestígio, permanência e força. Mas vem cá: é literatura ou é jornalismo? Se o objetivo do autor é fazer literatura e ele sabe fazer...
Há crônicas que são dissertações, como em Machado de Assis; outras são poemas em prosa, como em Paulo Mendes Campos; outras são pequenos contos, como em Nelson Rodrigues; ou casos, como os de Fernando Sabino; outras são evocações, como em Drummond e Rubem Braga; ou memórias e reflexões, como em tantos. A crônica tem a mobilidade de aparências e de discursos que a poesia tem — e facilidades que a melhor poesia não se permite.
Está em toda a imprensa brasileira, de 150 anos para cá. O professor Antonio Candido observa: “Até se poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e pela originalidade com que aqui se desenvolveu”.
Alexandre Eulálio, um sábio, explicou essa origem estrangeira: “É nosso familiar essay², possui tradição de primeira ordem, cultivada desde o amanhecer do periodismo nacional pelos maiores poetas e prosistas da época”. Veio, pois, de um tipo de texto comum na imprensa inglesa do século XIX, afável, pessoal, sem-cerimônia e, no entanto, pertinente.
Por que deu certo no Brasil? Mistérios do leitor. Talvez por ser a obra curta e o clima, quente.
A crônica é frágil e íntima, uma relação pessoal. Como se fosse escrita para um leitor, como se só com ele o narrador pudesse se expor tanto. Conversam sobre o momento, cúmplices: nós vimos isto, não é, leitor?, vivemos isto, não é?, sentimos isto, não é? O narrador da crônica procura sensibilidades irmãs.
Se é tão antiga e íntima, por que muitos leitores não aprenderam a chamá-la pelo nome? É que ela tem muitas máscaras. Recorro a Eça de Queirós, mestre do estilo antigo. Ela “não tem a voz grossa da política, nem a voz indolente do poeta, nem a voz doutoral do crítico; tem uma pequena voz serena, leve e clara, com que conta aos seus amigos tudo o que andou ouvindo, perguntando, esmiuçando”.
A crônica mudou, tudo muda. Como a própria sociedade que ela observa com olhos atentos. Não é preciso comparar grandezas, botar Rubem Braga diante de Machado de Assis. É mais exato apreciá-la desdobrando-se no tempo, como fez Antonio Candido em “A vida ao rés do chão”: “Creio que a fórmula moderna, na qual entram um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis³ de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma”. Ainda ele: “Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas”.
Elementos que não funcionam na crônica: grandiloquência, sectarismo, enrolação, arrogância, prolixidade. Elementos que funcionam: humor, intimidade, lirismo, surpresa, estilo, elegância, solidariedade.
Cronista mesmo não “se acha”. As crônicas de Rubem Braga foram vistas pelo sagaz professor Davi Arrigucci como “forma complexa e única de uma relação do Eu com o mundo”. Muito bem. Mas Rubem Braga não se achava o tal. Respondeu assim a um jornalista que lhe havia perguntado o que é crônica:
— Se não é aguda, é crônica.
1. Blaise Pascal (1623-1662), matemático, filósofo e teólogo francês, autor de Pensamentos.
2. “Ensaio familiar”. Ensaio é um gênero inaugurado por Michel de Montaigne (1533-1592); vem da palavra francesa essayer (“tentar”). Um ensaio é um texto onde se encadeiam argumentos, por meio dos quais o autor defende uma ideia.
3. Em latim, “a quantidade necessária”.
Veja São Paulo, 25/4/2007.
Do rock
Carlos Heitor Cony
Carlos Heitor Cony
Tocam a campainha e há um
estrondo em meus ouvidos. A empregada estava de folga, o remédio era atender o
mau-caráter que me batia à porta àquela hora da manhã. Vejo o camarada do
bigodinho com o embrulho largo e enfeitado.
— É aqui que mora a senhorita Regina Celi?
Digo que não e fulmino o importuno com um olhar cheio de ódio e sono, mas antes de fechar a porta sinto alguma coisa de íntimo naquele “senhorita Regina Celi”, sim, há uma Regina Celi em minha casa, minha própria filha, mas apenas de 12 anos, uma guria bochechuda ainda, não merecia o título e a função de senhorita.
Chamo o homem que já estava no elevador. Eram CDs, a garota encomendara um mundão de CDs numa loja próxima, e pedira que mandassem as novidades, pois as novidades estavam ali, embrulhadinhas e com a nota fiscal bem às claras.
Gemo surdamente na hora de assinar o cheque e recebo o embrulho. A garota dormia impune, o mundo podia desabar, e ninguém a despertaria do sono 12 anos. Deixo o embrulho em cima do som e volto para a cama, forçar o sono e a tranquilidade interior, abalada pelo cheque tão matutino e fora de propósito. Quando ordeno os pensamentos e ambições no estreito espaço do meu pensamento e retomo um sono e um sonho sem cor nem gosto, começa o rock.
Anos atrás, seria começa o beguine. Mas o beguine passou de moda, e o swing, o mambo, o baião e outras pragas vindas de alheias e próprias pragas. Pois aí estava o rock, matinal, cor de sangue e metal inundando o dia e o quarto com sua voz rouca, seu compasso monótono e histérico.
Purgo honestamente meus pecados e lembro o pai, que me aturava a mania pelos sambas de Ary Barroso. O velho não dizia nada, mas me olhava fundo e talvez tivesse ganas de me esganar. Mas me aturava e aturava o meu Brasil brasileiro.
Hoje, aturo o rock. Vou ao banheiro, lavo o rosto, visto um short e vou para a sala disposto a causar boa impressão à senhorita Regina Celi, que de babydoll, esbaforida, se degringola ao som de U2.
O tapete já fora arrastado e amarfanhado a um canto. Meu castiçal de prata foi profanado com a cara de um tipo até simpático que naquela manhã ganhará alguma coisa à custa do meu labor e cheque.
A senhorita Regina Celi tem a cara afogueada, os pés e as pernas avançam e ficam no mesmo lugar, o corpo todo treme e sua, até que ela me estende o braço.
— Vem, papai!
O peso dos meus invernos e minhas banhas causa breve hesitação. Mas ali estamos, eu e a senhorita Regina Celi, uma menina que ainda pego no colo e aqueço com meu amor e o meu carinho, quando ela tem medo do mundo ou de não saber os afluentes da margem esquerda do rio Amazonas na hora do exame. Ela me chama e me perdoa.
Então, aumento o volume do som, espero o tal do U2 dar um grito histérico e medonho - e esqueço o cheque, a vida e a faina humana rebolando este cansado corpo-pasto de espantos - até que o fôlego e o U2 acabem na manhã e no som.
Crônicas para se ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
— É aqui que mora a senhorita Regina Celi?
Digo que não e fulmino o importuno com um olhar cheio de ódio e sono, mas antes de fechar a porta sinto alguma coisa de íntimo naquele “senhorita Regina Celi”, sim, há uma Regina Celi em minha casa, minha própria filha, mas apenas de 12 anos, uma guria bochechuda ainda, não merecia o título e a função de senhorita.
Chamo o homem que já estava no elevador. Eram CDs, a garota encomendara um mundão de CDs numa loja próxima, e pedira que mandassem as novidades, pois as novidades estavam ali, embrulhadinhas e com a nota fiscal bem às claras.
Gemo surdamente na hora de assinar o cheque e recebo o embrulho. A garota dormia impune, o mundo podia desabar, e ninguém a despertaria do sono 12 anos. Deixo o embrulho em cima do som e volto para a cama, forçar o sono e a tranquilidade interior, abalada pelo cheque tão matutino e fora de propósito. Quando ordeno os pensamentos e ambições no estreito espaço do meu pensamento e retomo um sono e um sonho sem cor nem gosto, começa o rock.
Anos atrás, seria começa o beguine. Mas o beguine passou de moda, e o swing, o mambo, o baião e outras pragas vindas de alheias e próprias pragas. Pois aí estava o rock, matinal, cor de sangue e metal inundando o dia e o quarto com sua voz rouca, seu compasso monótono e histérico.
Purgo honestamente meus pecados e lembro o pai, que me aturava a mania pelos sambas de Ary Barroso. O velho não dizia nada, mas me olhava fundo e talvez tivesse ganas de me esganar. Mas me aturava e aturava o meu Brasil brasileiro.
Hoje, aturo o rock. Vou ao banheiro, lavo o rosto, visto um short e vou para a sala disposto a causar boa impressão à senhorita Regina Celi, que de babydoll, esbaforida, se degringola ao som de U2.
O tapete já fora arrastado e amarfanhado a um canto. Meu castiçal de prata foi profanado com a cara de um tipo até simpático que naquela manhã ganhará alguma coisa à custa do meu labor e cheque.
A senhorita Regina Celi tem a cara afogueada, os pés e as pernas avançam e ficam no mesmo lugar, o corpo todo treme e sua, até que ela me estende o braço.
— Vem, papai!
O peso dos meus invernos e minhas banhas causa breve hesitação. Mas ali estamos, eu e a senhorita Regina Celi, uma menina que ainda pego no colo e aqueço com meu amor e o meu carinho, quando ela tem medo do mundo ou de não saber os afluentes da margem esquerda do rio Amazonas na hora do exame. Ela me chama e me perdoa.
Então, aumento o volume do som, espero o tal do U2 dar um grito histérico e medonho - e esqueço o cheque, a vida e a faina humana rebolando este cansado corpo-pasto de espantos - até que o fôlego e o U2 acabem na manhã e no som.
Crônicas para se ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
Considerações em torno das aves-balas
Ivan Ângelo
Ivan Ângelo
Balas
perdidas transformam-se em notícia por todo o país.
Desde que isso começou — não faz muito tempo, nem pouco — mais de uma centena de pessoas foram atingidas só na cidade do Rio de Janeiro. Em São Paulo não se conta, ou perde-se a conta. Em Belo Horizonte, elas sinistramente trabalham em silêncio. Em Salvador são abafadas pelo baticum dos tambores. Sem nenhum bairrismo elas voam geral, irrompem num circo, num ônibus, numa janela de sala de estar, numa padaria, em muitas escolas, numa praça, num banco, numa rua e se alojam num corpo. Aí se livram da sua característica principal — a de perdidas — e se acham, são achadas.
Por que se diz perdida? Perdida é a bala que não se encontra nunca, são as que voam até perder a força e tombam, exaustas e sem glórias de Jornal Nacional, num mato qualquer.
A bala perdida: quem a perdeu? A linguagem tem sempre uma lógica. Quem perdeu a bala perdida? O atirador? Pior para quem a achou.
Uma pessoa quando perdida, não tem rumo. Se diz: desorientada. Uma bala não. A bala perdida segue reta e veloz como quem sabe aonde vai. Igualzinho às outras, suas irmãs, que levam endereço certo.
Perdida, então quer dizer o quê? Desperdiçada? A linguagem nem sempre tem lógica. Quem perdeu a bala perdida? O atirador? Pior para quem achou.
Quando acha um corpo a bala pode ainda se chamar perdida? A que acha, mesmo não sendo aquele corpo que buscava, será menos desperdiçada do que as outras, que esbarram em uma simples parede?
Ninguém procura balas perdidas. Nem quem as perdeu, nem quem as encontrou, sem querer. São indesejadas, e quanto mais o sejam, mais ansiosas parecem por alojar-se. Essas balas voadoras, libertas da sua casca, só são realmente perdidas se ninguém nunca mais as viu. Então são também inúteis, pois isso é a negação da sua essência mortal.
Uma bala, quando útil, fere, mata. É criadora: cria órfãos, viúvas, pais inconsoláveis. Quem a dispara sabe disso. Quem fabrica e vende sabe disso. Quem recolhe impostos sobre ela sabe muito bem. Porque ela não serve para mais nada, para isso foi feita.
Seria próprio chamar de desaparecidas essas inúteis? No país das balas perdidas, perdem-se também crianças, chamadas desaparecidas. Mas esta já é outra história.
Não, a essas balas não se poderia chamar de desaparecidas porque ninguém sabia delas antes de se libertarem de sua casca, ainda pacíficas, guardando para si sua capacidade voadora e mortal. Só depois que explodem é que voam, e então se perdem ou não.
O poeta João Cabral de Melo Neto deu um lindo nome a essas balas sem dono: ave-bala. No poema “Morte e vida Severina”, o retirante pergunta aos que levam um defunto: “Quem contra ele soltou / essa ave-bala”. E a resposta: “Ali é difícil dizer / Irmão das almas, / Sempre há uma bala voando / desocupada”.
Éramos um povo acostumado à arma branca, à peixeira, ao punhal, ao facão; herdamos a tradição ibérica de sangrar, cortar o pescoço, capar. Meninos já tinham seu canivete de ponta. Malandros riscavam o ar com navalhas. Mulheres da vida brandiam giletes. Numa arruaça, quem metia a mão numa cara, dava rasteiras. Em algum momento o “te meto a faca” virou “te meto a bala”, aquele “te meto a mão na cara” virou “te meto uma bala na cara”. Começaram a voar as aves-balas.
O que aconteceu no meio? Talvez o cinema, o faroeste, os gangsters, a TV, guerras sujas, guerrilhas, terrorismo, drogas proibidas. Nasceu o culto da pontaria certeira. Billy the Kid, John Wayne, Randolph Scott, Frank e Jesse James, Schwarzenegger, Stalone, Matrix. “No século do progresso / o revólver teve ingresso / pra acabar com a valentia” — cantou Noel Rosa nos anos 1930. Surgiu outro tipo de valente, o que fica atrás do revólver. Não é preciso arriscar-se, chegar perto para ferir. “Mais garantido é de bala / Mais longe fere”, diz o poeta João Cabral. Ninguém pense que a influência estrangeira é justificativa. Não, não importamos a violência, ela é mais nossa que o petróleo. Importamos foi a cultura da arma de fogo.
No país das balas perdidas, perdem-se também crianças, nem sempre desaparecidas. Muitas delas, talvez a maioria, vão mais tarde brincar por aí de soltar aves-balas, nem sempre perdidas.
O comprador de aventuras e outras crônicas. São Paulo: Ática, 2000. Coleção Para Gostar de Ler, v. 28.
Desde que isso começou — não faz muito tempo, nem pouco — mais de uma centena de pessoas foram atingidas só na cidade do Rio de Janeiro. Em São Paulo não se conta, ou perde-se a conta. Em Belo Horizonte, elas sinistramente trabalham em silêncio. Em Salvador são abafadas pelo baticum dos tambores. Sem nenhum bairrismo elas voam geral, irrompem num circo, num ônibus, numa janela de sala de estar, numa padaria, em muitas escolas, numa praça, num banco, numa rua e se alojam num corpo. Aí se livram da sua característica principal — a de perdidas — e se acham, são achadas.
Por que se diz perdida? Perdida é a bala que não se encontra nunca, são as que voam até perder a força e tombam, exaustas e sem glórias de Jornal Nacional, num mato qualquer.
A bala perdida: quem a perdeu? A linguagem tem sempre uma lógica. Quem perdeu a bala perdida? O atirador? Pior para quem a achou.
Uma pessoa quando perdida, não tem rumo. Se diz: desorientada. Uma bala não. A bala perdida segue reta e veloz como quem sabe aonde vai. Igualzinho às outras, suas irmãs, que levam endereço certo.
Perdida, então quer dizer o quê? Desperdiçada? A linguagem nem sempre tem lógica. Quem perdeu a bala perdida? O atirador? Pior para quem achou.
Quando acha um corpo a bala pode ainda se chamar perdida? A que acha, mesmo não sendo aquele corpo que buscava, será menos desperdiçada do que as outras, que esbarram em uma simples parede?
Ninguém procura balas perdidas. Nem quem as perdeu, nem quem as encontrou, sem querer. São indesejadas, e quanto mais o sejam, mais ansiosas parecem por alojar-se. Essas balas voadoras, libertas da sua casca, só são realmente perdidas se ninguém nunca mais as viu. Então são também inúteis, pois isso é a negação da sua essência mortal.
Uma bala, quando útil, fere, mata. É criadora: cria órfãos, viúvas, pais inconsoláveis. Quem a dispara sabe disso. Quem fabrica e vende sabe disso. Quem recolhe impostos sobre ela sabe muito bem. Porque ela não serve para mais nada, para isso foi feita.
Seria próprio chamar de desaparecidas essas inúteis? No país das balas perdidas, perdem-se também crianças, chamadas desaparecidas. Mas esta já é outra história.
Não, a essas balas não se poderia chamar de desaparecidas porque ninguém sabia delas antes de se libertarem de sua casca, ainda pacíficas, guardando para si sua capacidade voadora e mortal. Só depois que explodem é que voam, e então se perdem ou não.
O poeta João Cabral de Melo Neto deu um lindo nome a essas balas sem dono: ave-bala. No poema “Morte e vida Severina”, o retirante pergunta aos que levam um defunto: “Quem contra ele soltou / essa ave-bala”. E a resposta: “Ali é difícil dizer / Irmão das almas, / Sempre há uma bala voando / desocupada”.
Éramos um povo acostumado à arma branca, à peixeira, ao punhal, ao facão; herdamos a tradição ibérica de sangrar, cortar o pescoço, capar. Meninos já tinham seu canivete de ponta. Malandros riscavam o ar com navalhas. Mulheres da vida brandiam giletes. Numa arruaça, quem metia a mão numa cara, dava rasteiras. Em algum momento o “te meto a faca” virou “te meto a bala”, aquele “te meto a mão na cara” virou “te meto uma bala na cara”. Começaram a voar as aves-balas.
O que aconteceu no meio? Talvez o cinema, o faroeste, os gangsters, a TV, guerras sujas, guerrilhas, terrorismo, drogas proibidas. Nasceu o culto da pontaria certeira. Billy the Kid, John Wayne, Randolph Scott, Frank e Jesse James, Schwarzenegger, Stalone, Matrix. “No século do progresso / o revólver teve ingresso / pra acabar com a valentia” — cantou Noel Rosa nos anos 1930. Surgiu outro tipo de valente, o que fica atrás do revólver. Não é preciso arriscar-se, chegar perto para ferir. “Mais garantido é de bala / Mais longe fere”, diz o poeta João Cabral. Ninguém pense que a influência estrangeira é justificativa. Não, não importamos a violência, ela é mais nossa que o petróleo. Importamos foi a cultura da arma de fogo.
No país das balas perdidas, perdem-se também crianças, nem sempre desaparecidas. Muitas delas, talvez a maioria, vão mais tarde brincar por aí de soltar aves-balas, nem sempre perdidas.
O comprador de aventuras e outras crônicas. São Paulo: Ática, 2000. Coleção Para Gostar de Ler, v. 28.
Pavão
Rubem Braga
Rubem Braga
Eu
considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo
imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não
existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas
d’água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de
plumas. Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de
matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu
grande mistério é a simplicidade.
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.
Ai de ti, Copacabana. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960.
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.
Ai de ti, Copacabana. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960.
VÓ CAIU NA PISCINA
Noite na casa da serra, a luz apagou. Entra o garoto:
– Pai, vó caiu na piscina.
– Tudo bem, filho.
O garoto insiste:
– Escutou o que eu falei, pai?
– Escutei, e daí? Tudo bem.
– Cê não vai lá?
– Não estou com vontade de cair na piscina.
– Mas ela tá lá...
– Eu sei, você já me contou. Agora deixe seu pai fumar um cigarrinho descansado.
– Tá escuro, pai.
– Assim até é melhor. Eu gosto de fumar no escuro. Daqui a pouco a luz volta. Se não voltar, dá no mesmo. Pede à sua mãe pra acender a vela na sala. Eu fico aqui mesmo, sossegado.
– Pai...
– Meu filho, vá dormir. É melhor você deitar logo. Amanhã cedinho a gente volta pro Rio, e você custa a acordar. Não quero atrasar a descida por sua causa.
– Vó tá com uma vela.
– Pois então? Tudo bem. Depois ela acende.
– Já tá acesa.
– Se está acesa, não tem problema. Quando ela sair da piscina, pega a vela e volta direitinho pra casa. Não vai errar o caminho, a distância é pequena, você sabe muito bem que sua avó não precisa de guia.
– Por quê cê não acredita no que eu digo?
– Como não acredito? Acredito sim.
– Cê não tá acreditando.
– Você falou que a sua avó caiu na piscina, eu acreditei e disse: tudo bem. Que é que você queria que eu dissesse?
– Não, pai, cê não acreditou ni mim.
– Ah, você está me enchendo. Vamos acabar com isso. Eu acreditei. Quantas vezes você quer que eu diga isso? Ou você acha que estou dizendo que acreditei mas estou mentindo? Fique sabendo que seu pai não gosta de mentir.
– Não te chamei de mentiroso.
– Não chamou, mas está duvidando de mim. Bem, não vamos discutir por causa de uma bobagem. Sua avó caiu na piscina, e daí? É um direito dela. Não tem nada de extraordinário cair na piscina. Eu só não caio porque estou meio resfriado.
– Ô, pai, cê é de morte!
O garoto sai, desolado. Aquele velho não compreende mesmo nada. Daí a pouco chega a mãe:
– Eduardo, você sabe que dona Marieta caiu na piscina?
– Até você, Fátima? Não chega o Nelsinho vir com essa ladainha?
– Eduardo, está escuro que nem breu, sua mãe tropeçou, escorregou e foi parar dentro da piscina, ouviu? Está com a vela acesa na mão, pedindo para que tirem ela de lá, Eduardo! Não pode sair sozinha, está com a roupa encharcada, pesando muito, e se você não for depressa, ela vai ter uma coisa! Ela morre, Eduardo!
– Como? Por que aquele diabo não me disse isto? Ele falou apenas que ela tinha caído na piscina, não explicou que ela tinha tropeçado, escorregado e caído!
Saiu correndo, nem esperou a vela, tropeçou, quase que ia parar também dentro d’água.
– Mamãe, me desculpe! O menino não me disse nada direito. Falou que a senhora caiu na piscina. Eu pensei que a senhora estava se banhando.
– Está bem, Eduardo – disse dona Marieta, safando-se da água pela mão do filho, e sempre empunhando a vela que conseguira manter acesa. – Mas de outra vez você vai prestar mais atenção no sentido dos verbos, ouviu? Nelsinho falou direito, você é que teve um acesso de burrice, meu filho!
ANDRADE, Carlos Drummond de. Vó caiu na piscina. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1996.
Noite na casa da serra, a luz apagou. Entra o garoto:
– Pai, vó caiu na piscina.
– Tudo bem, filho.
O garoto insiste:
– Escutou o que eu falei, pai?
– Escutei, e daí? Tudo bem.
– Cê não vai lá?
– Não estou com vontade de cair na piscina.
– Mas ela tá lá...
– Eu sei, você já me contou. Agora deixe seu pai fumar um cigarrinho descansado.
– Tá escuro, pai.
– Assim até é melhor. Eu gosto de fumar no escuro. Daqui a pouco a luz volta. Se não voltar, dá no mesmo. Pede à sua mãe pra acender a vela na sala. Eu fico aqui mesmo, sossegado.
– Pai...
– Meu filho, vá dormir. É melhor você deitar logo. Amanhã cedinho a gente volta pro Rio, e você custa a acordar. Não quero atrasar a descida por sua causa.
– Vó tá com uma vela.
– Pois então? Tudo bem. Depois ela acende.
– Já tá acesa.
– Se está acesa, não tem problema. Quando ela sair da piscina, pega a vela e volta direitinho pra casa. Não vai errar o caminho, a distância é pequena, você sabe muito bem que sua avó não precisa de guia.
– Por quê cê não acredita no que eu digo?
– Como não acredito? Acredito sim.
– Cê não tá acreditando.
– Você falou que a sua avó caiu na piscina, eu acreditei e disse: tudo bem. Que é que você queria que eu dissesse?
– Não, pai, cê não acreditou ni mim.
– Ah, você está me enchendo. Vamos acabar com isso. Eu acreditei. Quantas vezes você quer que eu diga isso? Ou você acha que estou dizendo que acreditei mas estou mentindo? Fique sabendo que seu pai não gosta de mentir.
– Não te chamei de mentiroso.
– Não chamou, mas está duvidando de mim. Bem, não vamos discutir por causa de uma bobagem. Sua avó caiu na piscina, e daí? É um direito dela. Não tem nada de extraordinário cair na piscina. Eu só não caio porque estou meio resfriado.
– Ô, pai, cê é de morte!
O garoto sai, desolado. Aquele velho não compreende mesmo nada. Daí a pouco chega a mãe:
– Eduardo, você sabe que dona Marieta caiu na piscina?
– Até você, Fátima? Não chega o Nelsinho vir com essa ladainha?
– Eduardo, está escuro que nem breu, sua mãe tropeçou, escorregou e foi parar dentro da piscina, ouviu? Está com a vela acesa na mão, pedindo para que tirem ela de lá, Eduardo! Não pode sair sozinha, está com a roupa encharcada, pesando muito, e se você não for depressa, ela vai ter uma coisa! Ela morre, Eduardo!
– Como? Por que aquele diabo não me disse isto? Ele falou apenas que ela tinha caído na piscina, não explicou que ela tinha tropeçado, escorregado e caído!
Saiu correndo, nem esperou a vela, tropeçou, quase que ia parar também dentro d’água.
– Mamãe, me desculpe! O menino não me disse nada direito. Falou que a senhora caiu na piscina. Eu pensei que a senhora estava se banhando.
– Está bem, Eduardo – disse dona Marieta, safando-se da água pela mão do filho, e sempre empunhando a vela que conseguira manter acesa. – Mas de outra vez você vai prestar mais atenção no sentido dos verbos, ouviu? Nelsinho falou direito, você é que teve um acesso de burrice, meu filho!
ANDRADE, Carlos Drummond de. Vó caiu na piscina. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1996.
Interpretação
de texto:
1. Leia o
trecho:
− Pai, vó
caiu na piscina.
− Tudo
bem filho.
a. O que
Nelsinho quis dizer?
b. O que
Eduardo entendeu?
c. O que
causou a confusão?
2. No
texto, predomina o diálogo, ou seja, as personagens conversam.
Observe
os sinais de pontuação e responda.
a. Para
que serve os dois- pontos?
b.
Para que serve o travessão?
3. Qual é
o clímax da história?
4. Você
concorda com a fala de dona Marieta quando ela diz que o filho teve “acesso de
burrice”? Explique o que entendeu.
5. Copie
o texto no caderno trocando a linguagem coloquial pela culta.
NO
RESTAURANTE
- Quero lasanha.
Aquele anteprojeto de mulher - quatro anos, no máximo, desabrochando na ultraminissaia - entrou decidido no restaurante. Não precisava de menu, não precisava de mesa, não precisava de nada. Sabia perfeitamente o que queria. Queria lasanha.
O pai, que mal acabara de estacionar o carro em uma vaga de milagre, apareceu para dirigir a operação-jantar, que é, ou era, da competência dos senhores pais.
- Meu bem, venha cá.
- Quero lasanha.
- Escute aqui, querida. Primeiro, escolhe-se a mesa.
- Não, já escolhi. Lasanha.
Que parada - lia-se na cara do pai. Relutante, a garotinha condescendeu em sentar-se primeiro, e depois encomendar o prato:
- Vou querer lasanha.
- Filhinha, por que não pedimos camarão? Você gosta tanto de camarão.
- Gosto, mas quero lasanha.
- Eu sei, eu sei que você adora camarão. A gente pede uma fritada bem bacana de camarão. Tá?
- Quero lasanha, papai. Não quero camarão.
- Vamos fazer uma coisa. Depois do camarão a gente traça uma lasanha. Que tal?
- Você come camarão e eu como lasanha.
O garçom aproximou-se, e ela foi logo instruindo:
- Quero uma lasanha.
O pai corrigiu:
- Traga uma fritada de camarão pra dois. Caprichada.
A coisinha amuou. Então não podia querer? Queriam querer em nome dela? Por que é proibido comer lasanha? Essas interrogações também se liam no seu rosto, pois os lábios mantinham reserva. Quando o garçom voltou com os pratos e o serviço, ela atacou:
- Moço, tem lasanha?
- Perfeitamente, senhorita.
O pai, no contra-ataque:
- O senhor providenciou a fritada?
- Já, sim, doutor.
- De camarões bem grandes?
- Daqueles legais, doutor.
- Bem, então me vê um chinite, e pra ela... O que é que você quer, meu anjo?
- Uma lasanha.
- Traz um suco de laranja pra ela.
Com o chopinho e o suco de laranja, veio a famosa fritada de camarão, que, para surpresa do restaurante inteiro, interessado no desenrolar dos acontecimentos, não foi recusada pela senhorita. Ao contrário, papou-a, e bem. A silenciosa manducação atestava, ainda uma vez, no mundo, a vitória do mais forte.
- Estava uma coisa, heim? - comentou o pai, com um sorriso bem alimentado. - Sábado que vem, a gente repete... Combinado?
- Agora a lasanha, não é, papai?
- Eu estou satisfeito. Uns camarões tão geniais! Mas você vai comer mesmo?
- Eu e você, tá?
- Meu amor, eu...
- Tem de me acompanhar, ouviu? Pede a lasanha.
O pai baixou a cabeça, chamou o garçom, pediu. Aí, um casal, na mesa vizinha, bateu palmas. O resto da sala acompanhou. O pai não sabia onde se meter. A garotinha, impassível. Se, na conjuntura, o poder jovem cambaleia, vem aí, com força total, o poder ultra-jovem.
ANDRADE, Carlos Drummond. Crônicas I - “Para Gostar de Ler 1”. São Paulo: Editora Ática; 2005. 27º Edição
- Quero lasanha.
Aquele anteprojeto de mulher - quatro anos, no máximo, desabrochando na ultraminissaia - entrou decidido no restaurante. Não precisava de menu, não precisava de mesa, não precisava de nada. Sabia perfeitamente o que queria. Queria lasanha.
O pai, que mal acabara de estacionar o carro em uma vaga de milagre, apareceu para dirigir a operação-jantar, que é, ou era, da competência dos senhores pais.
- Meu bem, venha cá.
- Quero lasanha.
- Escute aqui, querida. Primeiro, escolhe-se a mesa.
- Não, já escolhi. Lasanha.
Que parada - lia-se na cara do pai. Relutante, a garotinha condescendeu em sentar-se primeiro, e depois encomendar o prato:
- Vou querer lasanha.
- Filhinha, por que não pedimos camarão? Você gosta tanto de camarão.
- Gosto, mas quero lasanha.
- Eu sei, eu sei que você adora camarão. A gente pede uma fritada bem bacana de camarão. Tá?
- Quero lasanha, papai. Não quero camarão.
- Vamos fazer uma coisa. Depois do camarão a gente traça uma lasanha. Que tal?
- Você come camarão e eu como lasanha.
O garçom aproximou-se, e ela foi logo instruindo:
- Quero uma lasanha.
O pai corrigiu:
- Traga uma fritada de camarão pra dois. Caprichada.
A coisinha amuou. Então não podia querer? Queriam querer em nome dela? Por que é proibido comer lasanha? Essas interrogações também se liam no seu rosto, pois os lábios mantinham reserva. Quando o garçom voltou com os pratos e o serviço, ela atacou:
- Moço, tem lasanha?
- Perfeitamente, senhorita.
O pai, no contra-ataque:
- O senhor providenciou a fritada?
- Já, sim, doutor.
- De camarões bem grandes?
- Daqueles legais, doutor.
- Bem, então me vê um chinite, e pra ela... O que é que você quer, meu anjo?
- Uma lasanha.
- Traz um suco de laranja pra ela.
Com o chopinho e o suco de laranja, veio a famosa fritada de camarão, que, para surpresa do restaurante inteiro, interessado no desenrolar dos acontecimentos, não foi recusada pela senhorita. Ao contrário, papou-a, e bem. A silenciosa manducação atestava, ainda uma vez, no mundo, a vitória do mais forte.
- Estava uma coisa, heim? - comentou o pai, com um sorriso bem alimentado. - Sábado que vem, a gente repete... Combinado?
- Agora a lasanha, não é, papai?
- Eu estou satisfeito. Uns camarões tão geniais! Mas você vai comer mesmo?
- Eu e você, tá?
- Meu amor, eu...
- Tem de me acompanhar, ouviu? Pede a lasanha.
O pai baixou a cabeça, chamou o garçom, pediu. Aí, um casal, na mesa vizinha, bateu palmas. O resto da sala acompanhou. O pai não sabia onde se meter. A garotinha, impassível. Se, na conjuntura, o poder jovem cambaleia, vem aí, com força total, o poder ultra-jovem.
ANDRADE, Carlos Drummond. Crônicas I - “Para Gostar de Ler 1”. São Paulo: Editora Ática; 2005. 27º Edição
Interpretação:
1. Com que detalhes
físicos o narrador descreve a menina?
2. Quais os pormenores
do comportamento dela?
3. Qual o conflito
vivido pelo pai e pela menina?
4. Nesse
conflito, houve um momento em que a vitória parecia pender para o lado do pai,
mas a filha venceu. Explique.
5. Que reações tiveram
as pessoas que estavam no restaurante durante o conflito?
6. Qual é a mensagem
deste texto?
7. Qual a diferença
entre poder jovem e poder ultrajovem?
8. Explique o que
significa “sorriso bem alimentado do pai”?
9. Qual a frase
escrita na linguagem popular que significa “ nós comemos uma lasanha”?
10. Quais os sinônimos
de “bem bacana” e “tá” na linguagem culta?
11. O que significa “
uma vaga de milagre”?
12. Em que sentido a
menina de 4 anos é um anteprojeto de mulher?
tudo que tem no meu caderno tem no seu site
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